
“Tiroteio durante ação policial em festa junina deixa um morto no Santo Amaro.” Assim o G1 escolheu noticiar mais uma ação desastrosa da Polícia do Rio de Janeiro, que na madrugada deste sábado (7) interrompeu a tiros uma celebração comunitária no Morro Santo Amaro, na Zona Sul, e matou Herus Guimarães Mendes, de 23 anos, trabalhador, pai, morador da favela.
Mas não houve “tiroteio”. Houve uma entrada armada, sem aviso, do Bope — braço de elite do Estado — durante uma festa junina lotada, com crianças, idosos e famílias inteiras reunidas. Houve disparos da polícia e pânico. Houve correria, feridos e o fim trágico de uma vida que não ameaçava ninguém. O uso do termo “tiroteio”, que sugere confronto, é uma escolha editorial que distorce os fatos e relativiza responsabilidades. É um desserviço. E a imprensa precisa ser cobrada por isso.
A naturalização da violência policial nas favelas não começa com os tiros, mas com as palavras. Chamam de “confronto” o que é massacre. Chamam de “suspeitos” os corpos que tombam sem ficha criminal. Chamam de “ação” o que é invasão. A linguagem jornalística, quando descompromissada com a realidade das periferias, vira cúmplice da barbárie. E não é exagero: ela constrói a moldura que absolve o Estado e culpa o território.
Herus não era traficante. Era office boy, pai de um menino de dois anos, e estava ali para dançar, rir, viver. A festa havia sido autorizada, segundo os moradores. E, mesmo assim, foi atravessada por uma operação cujos objetivos continuam desconhecidos. Até agora, o Bope não explicou a ação. Mas a imprensa, em muitos veículos, já ajudou a narrá-la como “mais uma operação policial”. Como se a favela fosse zona de guerra e não espaço de vida.
Não houve tiroteio. A BOPE chegou atirando. Segue aí o vídeo do exato momento.
Pessoas dançando e de repente são interrompidas pelos tiros que eles deram para dentro da comunidade. Até o momento, a confirmação é que acertaram 2 pessoas, 1 delas veio a óbito. pic.twitter.com/ahHW1zUoHn— 🔥🔥🔥 (@KLParedaoChamas) June 7, 2025
Quantas vezes mais o Rio vai ver a cultura ser interrompida por rajadas? Quantas vezes mais o Estado vai impor a morte como rotina? E quantas vezes mais a imprensa vai aceitar ser ventríloqua dessa lógica de extermínio?
A tragédia do Santo Amaro não é um ponto fora da curva, mas mais um capítulo da política de segurança racista que nega ao preto e ao pobre até o direito de festejar. É dever do jornalismo nomear os fatos com coragem. E, principalmente, lembrar que Herus tinha nome, história, e que sua vida importa.