Maluco Beleza oitentão

por Marcelo Henrique

“Morte, morte, morte, que talvez seja o segredo desta vida”
Raul Seixas (“Canto para a minha morte”, 1976)

Oitenta. Essa seria a idade a ser comemorada hoje. Raul Santos Seixas nasceu, pois, a 28 de junho de 1945 e, menos de três meses depois, terminava a segunda guerra mundial (considerado o ato de rendição formal do Japão, em 2 de setembro).

Raul nasce, assim, sob a influência marcante do meio social terreno, em que a guerra modificou o panorama coletivo e provocou marcantes transformações, influenciando todo o porvir. Há nesse espectro, a necessidade de entender e conciliar cinco das leis universais aplicáveis ao fato em si (guerra) e suas consequências temporais: conservação, destruição, progresso, sociedade e justiça, amor e caridade. Por extensão, o mundo não foi mais o mesmo (inclusive cotejando não somente uma, mas as duas guerras mundiais) e a individualidade e a coletividade passam a viver sob sua influência permanente: a sociedade e seus efeitos em relação aos indivíduos.

E, reciprocamente, as diferenças humanas, que são do Espírito, imortal, não são originárias do nascimento (vida físico-material), mas do conjunto de experiências das vidas sucessivas (sob a regência, para quem a aceita e entende, de outra lei, a da reencarnação). Eis aí a chave para entender porque alguns humanos são tão importantes para alterar contextos e influenciar o (no) progresso!

E Raul, sim, é uma influência marcante na vida brasileira, da filosofia à prática, das relações interindividuais às transpessoais, do micro ao macro, do uno ao todo e ao uno, consequentemente. Note-se que ele se “auto alcunhou” em inúmeras de suas poesias-canções: o Carimbador Maluco, Gita, Metamorfose Ambulante, Maluco Beleza, Cowboy fora da lei, Maçã…

Ele sabia disso, intimamente, quando escreveu: “Eu nasci há dez mil anos atrás” , (1976), complementando em tom poético – ainda que pudesse soar como soberba –: “E não tem nada nesse mundo que eu não saiba demais”. É Raul! Sabemos tudo o que se conforma ao nosso ângulo de visão, da posição em que nos encontramos, e sujeito às mutações, no instante seguinte. E este momento ulterior, provocará a racionalidade de observar entendendo e tendo ciência (ainda que relativa, claro!) do que surgiu em nossa frente. Meio socrático, isto, já que saber é não saber! Ou o que se sabe permite divisar um UNIVERSO em relação ao que (ainda) não se sabe… E o “saber demais” da poesia raulziana, destarte, é muito mais uma provocação para que possamos transcender…

Raul, como nós, foi – e vai, porque segue no pós-vida – continuando a aprender “o segredo da vida”, inclusive na meditação sobre os dias idos, “vendo as pedras que choram sozinhas no mesmo lugar”. Nesta sabedoria, ele nos impele ao progresso, quando “chacoalha” a mesmice do conformismo: “Eu não posso entender tanta gente aceitando a mentira” (“Medo da Chuva, 1974).

Afinal, ele, como nós, repetimos as mesmas perguntas: “Quem eu sou? De onde venho? E aonde vou dá?” (“Eu também vou reclamar”, 1976). Na mesma canção, um “esboço” da resposta: “E sendo nuvem passageira, não me leva nem à beira disso tudo que eu quero chegar”.

No palco da existência humana, diante da materialidade terrena, o músico também enunciou: “Quem vai ficar? Quem vai partir?”. Isto porque “o trem está chegando, tá chegando na estação”, e neste trem espiritual, uns vem, outros vão, destacando que “não precisa passagem, nem mesmo bagagem no trem”, que segue em frenética frequência, quando soa “o sinal das trombetas”, de “O trem das sete” (1984).

E, aos que seguem: “Boa viagem, até outra vez”, porque, nem sempre é possível seguir junto, ainda que, Raul dissesse (e quem não disse, diante da morte de um ente querido?): “O que eu queria mesmo era ir com vocês” (“O carimbador maluco”, 1983).

Raul Seixas nasceu soteropolitano e viveu intensos quarenta e quatro anos, morrendo em São Paulo a 21 de agosto de 1989. Compositor, cantor e multi-instrumentista, produtor musical, é considerado um dos pioneiros do rock brasileiro. Gravou dezessete discos em 26 anos de carreira. Se tivéssemos que eleger um epíteto para identificar o personagem, na música e fora dela, como ativista social – porque suas letras e suas performances, além das inúmeras entrevistas que concedeu o demonstram – Raulzito seria a própria “Metamorfose Ambulante” (1973), pois abominava ter “aquela velha opinião formada sobre tudo”. Nunca deveríamos esperar de Seixas a rotina da constância, a zona de conforto e a certeza imutável, pois o mundo gira e gira sempre…

Não foi, pois, uma “vida longa”, mas foi uma “longa vida”, por tudo o que experienciou, na música e fora dela. Não temia, como grande parte dos encarnados, o ato de morrer: “A morte, surda, caminha ao meu lado, e eu não sei em que esquina ela vai me beijar”. E, diante da imprecisão, do inesperado, do “destino”, ele ainda exortou: “Será que ela vai deixar eu acabar o que tenho de fazer?” (“Canto para a minha morte”, 1976). Não, Raul, ela não deixou, nem deixa, para cada um de nós. Mas é um adiamento, para voltar e retomar o que “faltou” dizer ou fazer…

Raul primava pela liberdade (a própria e a dos outros). Não fazia nenhuma ode ao personalismo interminável das vaidades humanas, reconhecendo a qualidade espiritual de ser livre: “Então vá, faz o que tu queres, pois tudo é da lei!”, justamente porque “todo homem, toda mulher é uma estrela” – olha a igualdade aí! (“Sociedade Alternativa”, 1974).

Foi, ele, um “Cowboy fora da lei” (1987), mas não queria “provar nada”, nem “entrar para a história”, para não ter que “morrer dependurado numa cruz”, como o Magrão!

O que pensava sobre o amor? Algo universal, amplo, dinâmico, efetivo, ainda que pudesse ser apenas visto, em sua letra (“A Maçã”, 1975) como algo profano e promíscuo: “Amor só dura em liberdade”, e “Se esse amor ficar entre nós dois, vai ser tão pobre, amor… vai se gastar”. O amor há de alcançar todas as quadrâncias, todos os alcances, todas as individualidades: “Porque quem gosta de maçã, irá gostar de todas, porque todas são iguais”. Amemos (todas) as maçãs, então…

O amor é, raulzianamente, o “Máximo Denominador Comum” de cada um de nós, viventes (“Tu és o MDC da minha vida”, 1975).

Seixas enxergava uma divindade dinâmica – e não prostrada e encastelada em um trono divinal. Ele descreve seu percurso, até o “encontro”: “Andei rezando para Totens e Jesus, jamais olhei pro céu” (S.O.S., 1974). E, em Gita (1974), toda a magia do entendimento do “Deus em nós” torna-se randômico e imprevisível: “Eu sou feito da terra, do fogo, da água e do ar”. Porque “eu sou a luz das estrelas, eu sou a cor do luar, eu sou as coisas da vida, eu sou o medo de amar”. Ele é tudo, ou está em tudo. No que “é bom ou ruim”, naquilo que temos “todo dia”. Incrível, porque ao nos afastarmos dessa essência, logo, em seguida, vamos lhe buscar, novamente: “Mas saiba que eu estou em você, mas você não está em mim”, uma “reprimenda” elucidativa e amorosa…

Por isso, não posso terminar esse ensaio – que é de gratidão à presença marcante de Raul Seixas em nossas vidas (na minha, notadamente, e, espero, também na sua, leitor!), dizendo que havia, na espiritualidade camaleônica de Raulzito, espaço não para a idolatria de um Deus criado pelo homem, concedente das “regalias” e das “virtudes” humanas, mas uma essência prévia e primeira, presente em nós, e influente em nossos atos, no sentido progressivo do termo. Porque ele não se conformava em ter que, genuflexoriamente, se curvar diante de um Deus-humano. Pois, rebeldemente, disse: “Eu devia agradecer ao Senhor por ter tido sucesso na vida como artista [e] […] finalmente vencido na vida”. Entretanto, “eu acho isso uma grande piada e um tanto quanto perigosa”. E a explicação é a marca não só do “Maluco Beleza”, mas de todos os que não se encastelam em suas posições atuais (tidas como definitivas): “E agora eu me pergunto: – e daí? Eu tenho uma porção de coisas grandes pra conquistar, e eu não posso ficar aqui parado!” (“Ouro de Tolo, 1973). Isto porque não somos – nem podemos ser – “formigas que trafegam sem porquê” (“S.O.S.”, 1974).

Jamais estaremos, meu querido Raulzito. As coisas para conquistarmos, espiritualmente, em todos os quadrantes, nascem a cada dia! Como, mesmo “o início, o fim e o meio”, de Gita (1974).

E, no futuro, “no dia em que a Terra” parar, não terá sido um “sonho de sonhador” (“O dia em que a Terra parou”, 1977): teremos cumprido o nosso desiderato! Ainda que existam outros mais a realizar, em outras plagas…

E seguiremos indo e vindo, porque “há tantos caminhos, tantas portas” e “tudo acaba onde começou” (“Meu amigo Pedro”, 1976).

Então, toca Raul! “E fim de papo!” (“Eu também vou reclamar”, 1976).

Imagem Wikpedia

Marcelo Henrique é graduado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (1993), e em Administração Pública (2021), pela Universidade Federal de Santa Catarina(UFSC). Especialista em Administração Pública e Auditoria, pela Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC (1994). Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí – Univali (2002). Está cursando Doutorado em Administração, na Universidade Federal de Santa Catarina(UFSC). Coordenador do Grupo Espiritismo COM Kardec: https://www.comkardec.net.br

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Last Update: 07/07/2025