Mais reparações
por Walnice Nogueira Galvão
A Esmeralda Bahia, de 380 k, roubada e levada para os Estados Unidos há 24 anos, acaba de ser devolvida. A saga da pedra de 180 mil quilates inclui furtos, desaparecimentos, sequestros (mesmo que falsos), contravenções e delinquências de toda ordem. Mas agora a justiça norteamericana decidiu, dando ganho de causa ao Brasil, e a pedra está sendo repatriada. Vale 1 bilhão de dólares. Destino dela: o Museu Nacional , no Rio de Janeiro, que tem coleções de mineralogia. Como são pedras, provavelmente escaparam ao incêndio que devastou as outras coleções. A de insetos, a maior do mundo, contava 6 milhões de exemplares, que foram consumidos pelas chamas em minutos. Faziam parte do acervo, entre muitas outras preciosidades de perda irreparável, artefatos de povos indígenas já extintos. E o espólio completo da bióloga Berta Lutz, que lá trabalhara anos a fio, dirigindo um departamento. Como talvez pouco se saiba, o Museu Nacional não é apenas um conjunto de vitrines, mas um centro de pesquisas de relevância global.
No vendaval que sopra sobre o colonialismo, de uma justiça incontornável, nada parece resistir. A maior concentração do mundo em objetos africanos encontra-se no Museu de Tervuren, em Bruxelas, dedicado aos espólios genocidas do Congo Belga. Até ele está passando por uma reforma “progressista”, que inclui africanos na direção dos trabalhos.
Na África, acabam de construír novos museus, para responder aos críticos que alegam falta de condições para tratar as obras, que se veriam deterioradas e arruinadas. Um deles é o moderníssimo Museu das Civilizações Africanas, em Dacar, na Nigéria.
Afora o Tervuren, certas casas são especializadas em arte africana, como o Museu Etnológico de Berlim e o de Arts Prémiers, do Quai Branly em Paris. Este devolveu 26 objetos, sob aplausos do mundo inteiro, mas reteve 7 mil, por exemplo. Ainda assim…
Já há um filme sobre o tema, intitulado Dahomey, que está recebendo prêmios mundo afora, entre eles o Urso de Ouro em Berlim. O Dahomey hoje faz parte da República do Benin. A diretora é uma mulher, Mati Diop: boa oportunidade para saudar o sucesso de mais uma cineasta mulher, tratando de questões substantivas.
É inacreditável, mas a Hudson Bay Company (uma variante canadense da Companhia das Índias Ocidentais lá deles) cerrou suas portas depois de três séculos de espoliação e roubo sistemático dos nativos, garantido pela coroa da Inglaterra, entregando a chave de sua maior loja de departamentos em Toronto ao Grande Chefe das Nações Primeiras, a título de indenização. Criada para fim específico de puro extrativismo, explorou peles de castor para chapéus europeus, obrigando os indígenas a entregarem aos brancos o produto de suas caçadas mas exponenciando-as por cerca de trezentos anos, num volume de milhões de peles. Um escândalo, hoje se sabe, paralelo ao do Congo Belga com o marfim e a borracha: neste era praxe amputar a mão direita dos nativos que não cumpriam a cota.
Mas o Kunsthaus de Zurique dá o bom exemplo, instituindo um projeto que pesquisa a genealogia das obras de arte de origem duvidosa, inclusive informando numa cartela apensa à peça sua procedência.
Entra no quadro geral das reparações o amplo movimento que se espraia pelo país todo de diplomar os alunos mortos pela ditadura militar. A mais atingida de do país foi a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, contando 15 baixas de alunos assassinados, com ênfase no curso de Ciências Socias, origem de tantas figuras ilustres nas artes, nas letras, nas ciências e na política. Ao todo a USP conta 39 mortos, em todas as Faculdades e incluindo 6 professores e 2 funcionários. A fonte é o Relatório da Comissão da Verdade, preparado ao longo de dez anos pelos historiadores da casa, sendo que a nossa Faculdade de Filosofia, tal a repressão que se encarniçou sobre ela, recebeu um volume inteiro, o de número 7. Pois bem: esta escola acaba de atribuir diplomas de conclusão de curso a todos os seus alunos assassinados, argumentando que foi o assassinato que interrompeu suas carreiras. Está sendo cogitada a concessão do título de doutor honoris causa àqueles que já tinham se formado e que eram professores.
Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP