Completamos neste ano um quarto do século XXI e, em diferentes âmbitos, seria importante nos perguntarmos: no começo do século, quais eram nossos desafios e objetivos? Em que avançamos e em que precisamos avançar?
Em 2000, instituía-se no País, por meio da lei 9.970, 18 de maio como o Dia Nacional de Combate ao Abuso e a Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. A data foi estabelecida em alusão ao caso de Araceli Cabrera Crespo, uma criança de oito anos estrupada e assassinada em 1973, no contexto do regime ditatorial. Um crime que gerou revolta e comoção, mas cujos envolvidos foram julgados e absolvidos. Portanto, o 18 de Maio foi adotado como um dia simbólico de luta, reparação histórica, prevenção e justiça.
Desde então, anualmente, maio é marcado por manifestações e intervenções protagonizadas por diversos atores sociais buscando lançar luzes sobre a complexa realidade nacional relacionada ao abuso e à exploração sexual de crianças e adolescentes, bem como o fortalecimento de práticas educativas, políticas de proteção e garantia de direitos.
A campanha Faça Bonito, ação organizada pelo Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes e a Rede ECPAT, uma coalização de organizações da sociedade civil que atua na proteção dos direitos deste público, é um importante marco nesta luta. A campanha conta com importantes parceiros nacionais e internacionais, como Unicef, Comissão Especial da Criança e do Adolescente da Ordem dos Advogados do Brasil, diferentes Centros de Defesa da Criança e do Adolescente, Conselho Nacional dos Direitos das Crianças e Adolescentes, entre outras importantes entidades civis e instâncias públicas.
Essa campanha se coloca como um movimento que busca ampliar a visibilidade e a incidência política sobre esta pauta a cada ano, incentivando que educadores e demais organizações se unam à luta. Inclusive, são disponibilizados no site da Campanha Faça Bonito materiais gráficos, estudos e recursos educativos para subsidiar ações nos diferentes territórios.
O debate público sobre violência sexual precisa ser fortalecido no País. Dados recentes, publicados no Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024, indicam que o Brasil registrava, no âmbito da população geral, em 2023, um estupro a cada seis minutos. Tais dados expressam o alto número e o crescimento dos casos de violência sexual no País. Em 2011, registrava-se no Brasil 43.869 casos de estupros e estupros de vulnerável. Já em 2023, doze anos mais tarde, foram registrados 83.988 casos, um crescimento de 91,5% no período.
A exemplo das publicações anteriores, os dados indicam que as maiores vítimas desta violência são “meninas (88,2%), negras (52,2%), de no máximo 13 anos (61,6%), estupradas por familiares ou conhecidos (84,7%), dentro de suas próprias residências (61,7%)”.
Dados apresentados pela Fundação Abrinq no relatório “Cenário da Infância e Adolescência no Brasil 2025″ corroboram os dados do Anuário de Segurança Pública, indicando que a residência é disparadamente o local de maior ocorrência dos casos de violência e abuso sexual de crianças e adolescentes, seja em âmbito nacional ou em análise regionalizada. Com base nos dados do Ministério da Saúde em 2023, das notificações de violência sexual realizadas no País, 67,4% se deram no âmbito da própria residência.
Passado um quarto do século XXI, podemos dizer que, se por um lado avançamos em legislação, registro de dados e organização coletiva, por outro, enfrentamos ainda um grave cenário de violência sexual e que crianças e adolescentes estão entre as suas maiores vítimas.
É importante ressaltar que as informações do Anuário Brasileiro de Segurança Pública estão baseadas nos boletins de ocorrência registrados pelas autoridades de segurança. E os dados da Fundação Abrinq estão baseados em dados do Ministério da Saúde. Neste sentido, é preciso levar em consideração que a violência e o abuso são ainda maiores do que as apontadas nestes números, pois nem toda violência gera notificação em boletins ou registros de atendimentos em saúde, ou seja, nitidamente há subnotificação de casos.
É importante frisar também que ainda convivemos com registros imprecisos e incompletos, seja em razão dos diferentes modelos de boletins adotados em cada estado ou região do País, seja em função da demora para se tomar conhecimento dos casos e dos diferentes desafios no acolhimento das vítimas, quando se manifestam ou denunciam a violência sofrida.
Como lidar e enfrentar tal realidade se, como indicam os dados, o lar é o local de maior incidência da violência e os familiares e conhecidos estão entre os maiores abusadores? Este é um tema sensível e por vezes de difícil compreensão, razão pela qual ampliar o debate público contribui para o crescimento do conhecimento popular e o necessário fortalecimento da rede de proteção.
Quando falamos em rede de proteção, falamos em uma rede de entidades e organizações, mas também de pessoas implicadas e comprometidas, com responsabilidade coletiva e cívica, de cuidado e atenção à garantia de direitos. Escolas, conselhos de direitos, pastorais, movimentos populares e coletivos diversos cumprem importante tarefa educativa cotidiana em pautar tais discussões e levá-las aos diferentes espaços das cidades. Além das ações educativas, empreendidas por esses atores, que ampliam o conhecimento e fortalecem a prevenção e o cuidado, é necessário ampliar o conhecimento sobre como proceder na hora de denunciar uma violação. Fatores como o medo, a vergonha e a naturalização, dificultam a denúncia e o enfrentamento das violações.
Visando ampliar a proteção e orientar as denúncias, a Fundação Abrinq aponta o que compete a cada órgão ao receber uma denúncia de violência sexual contra crianças e adolescentes. São indicados: Disque 100, Conselho Tutelar, delegacias, Centros de Atendimento Integrados para Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência, entre outros.
O Disque 100 é um serviço de Direitos Humanos, que funciona 24 horas por dia, todos os dias da semana, inclusive sábados, domingos e feriados, e recebe ligações de todo o Brasil. As ligações são gratuitas e as denúncias recebidas são encaminhadas aos órgãos competentes. Nos casos pertinentes são acionadas diretamente as autoridades para tomadas de providências. Segundo dados levantados pela Fundação Abrinq e discutidos em matéria publicada pelo Brasil de Fato em 2024, o Brasil registrava cerca de 124 denúncias de abuso sexual contra crianças e adolescentes por dia em 2023.
Além da violência no âmbito doméstico, é necessária a atenção às redes sociais e a exposição virtual. Em matéria publicada pela Agência Brasil em abril de 2025, o Brasil é apontado como o 5º país com mais denúncias de abuso sexual infantil online. Os dados estão fundamentados em um relatório internacional que considerou informações de 55 países, obtidos por meio de canais de denúncia de crimes na internet.
O alto número de denúncias pode ser um indicador de mobilização frente ao problema, porém também evidencia a necessidade de atenção quanto ao ambiente virtual, convocando-nos a avançar em políticas de regulamentação das redes sociais que responsabilizem práticas criminosas nesse ambiente promovam a educação digital, midiática e popular em direitos humanos.
O enfrentamento do abuso e da exploração sexual de crianças e adolescentes precisa ser compreendido como uma responsabilidade de toda a sociedade e, dada a configuração da manifestação desta violência, é necessário integrar ações de governo, entidades civis e de cada cidadão para construção de ambientes seguros e protetivos para a infância e a adolescência.
A capacitação continuada de profissionais da saúde, educação e assistência social é de extrema relevância, pois, em suas atividades cotidianas, podem identificar e encaminhar adequadamente os casos mapeados. Contudo, é preciso fortalecer com investimentos e condições de infraestrutura os serviços de atendimento psicológico e jurídico especializado às vítimas e às suas famílias. A proteção é um ato político e, como tal, demanda mobilização coletiva e ação institucional para sua efetivação. Veja como denunciar e quais são os órgãos que podem ser procurados nestes casos acessando este site.