Neste 7 de janeiro, completam-se 190 anos da Cabanagem, rebelião que ocorreu no Norte do país, na antiga província do Grã-Pará, em 1835. Assim como outros fatos históricos — contados a partir dos interesses de quem detém o poder — o episódio e sua importância são ignorados pela maioria do povo brasileiro. No entanto, tem sido apontada pela historiografia mais moderna como a maior revolta popular da história do Brasil.
O momento em que o movimento ocorreu foi singular e influenciou diretamente sua eclosão. Após Dom Pedro I abdicar do trono, em 1835, e sem que Dom Pedro II, uma criança de cinco anos, pudesse assumir o trono, o país foi governado por regentes.
Distante da capital, o Rio de Janeiro, a região do Grão-Pará — que abrangia os atuais estados do Maranhão, Piauí, Pará, Amazonas, Amapá e Roraima —, enfrentava conflitos políticos entre brasileiros e portugueses, que desejavam manter seu poder sobre o país mesmo após a Independência, em 1822.
Em meio a uma série de crises políticas desencadeadas por esse cenário instável, por interesses locais e por regentes autoritários, as populações mais vulneráveis e marginalizadas — que, assim como hoje, eram formadas majoritariamente por negros e indígenas — resolveram se rebelar contra a situação social em que viviam e contra a escravidão, passando a enfrentar as elites locais. O nome do movimento, aliás, alude ao tipo de moradia pobre em que essa população vivia: as cabanas.
“Em 7 de janeiro de 1835, dia de São Tomé, liderados por Antônio Vinagre, os rebeldes (tapuios, cabanos, negros e índios) tomaram o quartel e o palácio do governo em Belém, assassinando o presidente Lobo e Souza e apoderando-se de material bélico”, lembra o livro Brasil, uma biografia, das historiadoras Lilia Schwarcz e Heloisa Starling.
Na sequência, uma das principais lideranças do movimento e que se encontrava preso, Félix Antônio Clemente Malcher, foi nomeado novo presidente do Grão-Pará.
Conforme explica Luís Balkar Sá Peixoto Pinheiro, professor titular na Universidade Federal do Amazonas e autor de Visões da Cabanagem: Uma revolta popular e suas representações na historiografia, em artigo sobre o tema, “à reforma tópica e meramente política de Malcher e de seus seguidores – Francisco Vinagre e Eduardo Angelim entre eles – a base popular da Cabanagem apresentou demandas mais radicais e mesmo revolucionárias”.
Pinheiro escreve que “uma leitura atenta de suas ações demonstrará que essas demandas foram, essencialmente, anti-senhoriais. Populações negras afirmando em suas ações seu direito à liberdade. A massa pobre composta principalmente de índios, tapuios e mamelucos se insurgindo contra o recrutamento militar forçado e seus agentes. Em conjunto, querem o acesso à terra e o direito de dela tirar sua subsistência”.
Pouco tempo depois, em 19 de fevereiro do mesmo ano, Malcher — que era latifundiário e dono de engenhos de açúcar e que acabou traindo o movimento, ordenando que depusessem armas e voltassem ao trabalho, além de jurar obediência à Regência — foi deposto.
Pouco a pouco, a revolta foi aumentando e tomando a região, gerando violenta reação dos donos do poder. Ainda assim, os rebeldes resistiram até 1840. “Corroído por dentro, em verdadeira luta autofágica, o movimento foi massacrado pelas forças de uma Regência que quis fazer da repressão a ele um exemplo para outras províncias periféricas insatisfeitas com o arranjo político que produziu o Brasil independente”, analisa Pinheiro.
De acordo com Lilia e Heloísa, a revolta atiçava o medo das elites locais de uma revolução semelhante à que ocorrera no Haiti. Como resultado da forte reação dos donos do poder, elas apontam que “o saldo do número de mortes é dos mais cruéis: estima-se que de 30% a 40% de uma população de 100 mil habitantes”. Outros milhares foram presos.
Na avaliação do historiador José Alves de Souza Junior, da Universidade Federal do Pará — autor do livro Cabanagem: revolução amazônica: 1835-1840, apesar de derrotada, a revolta “não pode ser apagada da memória da população paraense como tem permanecido até hoje”.
Ele acrescenta que é preciso “devolver a ela a importância que teve como movimento que ousou enfrentar a elite econômica e política dominante na província do Pará, colocando em xeque a estrutura fundiária, que reconhecia o direito de propriedade da terra a muito poucos e a escravidão, a exclusão social da maioria da população”.