O “Dia Nacional contra o Desaparecimento Forçado”, 21 de junho, é carregado de simbolismo na Guatemala. Além do sequestro de 27 sindicalistas na sede da Central Nacional de Trabalhadores, em 1980, e os mais de 40 mil desaparecidos oficialmente – cinco mil delas crianças – a data registra a inauguração, em 2018, da “Passagem da Memória” em San Juan Comalapa.
O reconhecimento governamental tornou incontestável a denúncia dos familiares locais sobre a existência de um cemitério clandestino onde funcionava o destacamento militar de Chimaltenango.
“San Juan Comalapa era um lugar de paz, um espaço sagrado, em que nossos bosques abriam caminhos para a inteligência e a arte, mas logo chegou o Exército com suas listas negras de terror, medo e incerteza. A partir daí, uma vez capturada, a pessoa não regressava mais, as famílias eram desalojadas e as tropas do governo tomaram o controle”, afirmou Roselina Tuyuc Velasquez. Na sua opinião, a política de “extermínio forçado” praticada pela ditadura guatemalteca é a mesma de Israel contra os palestinos em Gaza.
“Sabíamos que nossos filhos, pais e parentes sequestrados pelos militares eram trazidos para cá e que se a Mãe Terra pudesse falar diria para buscarmos, pois encontraríamos seus corpos aqui. Por isso os escondeu com ternura, para nos devolver. E assim foi”, declarou Roselina, uma das fundadoras da Coordenação Nacional de Viúvas da Guatemala (Conavigua).
Entre 2003 e 2005, a Conavigua e a a Fundação de Antropologia Forense da Guatemala promoveram a exumação de 220 ossos de vítimas do antigo destacamento militar de Comalapa. Até o momento, através de amostras de DNA e pesquisas científicas, conseguiram identificar somente 86. “Continuamos lutando, não perdemos a esperança”, frisou Roselina.
Para que pudesse ser feito o reencontro com seus entes queridos, permitir sua identificação e dar-lhes um último adeus, as Mães de Comalapa precisaram se organizar e recorrer ao Ministério Público a fim de fazer a exumação. “Quando começamos os trabalhos, as tropas iniciaram a nos ameaçar, amedrontar e disparar. Disseram que tínhamos 40 dias e, se quiséssemos sair vivas, era preciso abandonar o local. Mas eu sabia que meu pai tinha ficado três dias dependurado e que ele se encontrava ali. De repente, apareceu um crânio. E reforçamos as buscas”, contou Roselina.
Chamamos de etnocídio a repressão e a terra arrasada praticada contra nossos povos”,
“Chamamos de etnocídio a repressão e a terra arrasada praticada contra nossos povos”, aponta María Canil, que teve o irmão sequestrado em janeiro de 1983 e os restos mortais encontrados próximos da Igreja Católica militar em San Pedro Jocopilas, em Quiché. Na Igreja, que serviu como destacamento militar, várias pessoas foram torturadas e executadas. Ela contou que teve um cunhado assassinado e que uma irmã continua buscando pelo marido desaparecido, “para dar-lhe sepultura digna”.
María Canil condenou o “genocídio praticado contra avós e bebês, de um governo que estuprava jovens e meninas, que queimava pessoas vivas para impedir que os povos levantassem suas vozes contra a enorme desigualdade”. Da mesma forma, rechaçou, “na Palestina estão matando meninos e meninas de fome”, algo cruel usado por Israel como arma de guerra.
Cinco massacres em apenas dois anos
Conforme a população local, sob o testemunho dos vulcões do Fogo e da Água, há pelo menos cinco massacres confirmados pelo Exército. O primeiro ocorreu na Prefeitura, em 1980, onde a polícia judiciária executou Florencio Apén junto com seis membros da família. O segundo foi em janeiro de 1981, na aldeia de Patzaj, onde as tropas governamentais bombardearam a população com aviões e helicópteros. O terceiro ocorreu em 19 de março de 1981 em Paxán. Os militares procuravam um objetivo militar e, como não o encontraram, torturaram, desnudaram e executaram 13 pessoas, queimando os cadáveres das vítimas. Em setembro de 1981, na aldeia de Xiquín Sanaí, o exército massacrou 60 pessoas, incluindo as que estavam reunidas no centro religioso católico da comunidade.
Representando o Escritório do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos na Guatemala, José González recordou o “profundo significado” de uma ação coletiva desempenhada em conjunto por técnicos e pela sociedade para denunciar “a política de desaparecimento forçado como instrumento de terror”. “A violação dos direitos humanos atenta contra a dignidade das pessoas. Mecanismos de justiça são necessários para que crimes como esses nunca mais voltem a ocorrer”, ressaltou.
Pela primeira vez na história, a Comissão Presidencial pela Paz e pelos Direitos Humanos se fez presente (Copadeh) se fez presente ao evento, reconhecendo a barbárie praticada, se comprometendo com a justiça e colocando a estrutura estatal à disposição dos familiares das vítimas.
Assombrado com o que testemunhou em Comalapa, o renomado antropólogo estadunidense Clyde Collins Snow – cujas confirmações esqueléticas incluem a do médico nazista Josef Mengele – solicitou à família que suas cinzas permanecessem no local, como manifesto de amor à humanidade contra a barbárie.
As ossadas reforçaram a acusação de que os 200 mil mortos executados pela ditadura entre 1960-1996, com financiamento, armas e treinamento dos Estados Unidos e de Israel representavam uma verdade oculta, mas bastante presente.
Neta de Roselina, Lia Tamup leu poesias carregadas de expectativa, de vida e futuro, que superavam a tragédia sofrida pelos dois avôs, “um sequestrado quando caminhava rumo ao trabalho e o outro na igreja”. “Assim ocorreu com muitas famílias, assassinadas simplesmente por buscar justiça, por lutar por nossa arte, nossa cultura e nossa culinária. A ditadura não queria que o país progredisse, mas continuamos aqui, ao lado de minha avó e de nossa gente, para sair em frente”, concluiu.
*Entidades apoiadoras desta cobertura para a Comunicasul: Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp), Federação dos/as Trabalhadores/as em Empresas de Crédito de São Paulo (Fetec-SP) e Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Construção e do Mobiliário de Araraquara (Sticma)