No dia 10 de novembro de 2019, o presidente da Bolívia, Alberto Morales, renunciou ao cargo. Havia sido reeleito poucos dias antes, em 23 de outubro. A oposição, porém, não aceitou sua vitória. Rumores de que milícias de direita, com apoio da polícia, entrariam no palácio presidencial para matá-lo fizeram com que Morales cedesse e, em rede nacional, convocasse novas eleições, afirmando que concordava com a criação de uma nova comissão eleitoral. Os partidos políticos da oligarquia boliviana, liderados por Carlos Mesa, seu desafiante, identificaram o sinal de fraqueza que esperavam. Rejeitaram a oferta e deram início a um processo que culminou na autoproclamação golpista da senadora Jeanine Áñez como presidente.

As vozes contra Morales eram praticamente unânimes. Raros foram os colunistas e editoriais que não lhe direcionaram acusações de “caudilho” e “ditador”. Já o tratamento dispensado a Áñez transitava entre a simpatia e a indiferença. O que importava era interromper, de qualquer maneira, o fluxo de governos progressistas iniciado em 2006.

A Organização dos Estados Americanos teve papel central no golpe ao divulgar um relatório preliminar sobre as eleições bolivianas. Repetido como mantra e prova absoluta do autoritarismo de Morales, o relatório concluiu que houve uma “mudança drástica e difícil de explicar na tendência dos resultados preliminares após o fechamento das pesquisas”. Com o aval de um organismo internacional de peso, a oposição se sentiu à vontade para arreganhar os dentes.

Embora o Centro de Pesquisa Econômica e Política tenha constatado a ausência de irregularidades na eleição e que não havia fundamento nas conclusões da OEA, quase nenhum espaço foi dado tanto a ele quanto ao arremate dos dois pesquisadores do Instituto de Tecnologia de Massachusetts que, em fevereiro de 2020, disseram não ter encontrado evidências de fraude nas eleições bolivianas. A OEA nada comentou, assim como não houve mea culpa dos analistas que apontaram o dedo contra Morales. Foi com base em seu relatório que a oligarquia boliviana promoveu verdadeiros pogroms contra partidários do ex-mandatário, sentindo-se à vontade para, com a chancela dos “defensores da democracia”, dar um golpe de Estado.

É a defesa vulgar da democracia que costuma sinalizar as intenções de passar por cima dela. Independente do resultado das eleições, a elite boliviana, o Departamento de Estado dos EUA e suas penas de aluguel já haviam decidido que Morales não poderia assumir. A eleição de Luís Arce, ex-ministro de Morales, em 2020 reconduziu o país aos trilhos e impôs uma severa derrota ao golpismo – incluindo a prisão e a condenação de golpistas, a exemplo da própria Áñez. Em 2024, uma nova tentativa de golpe fracassaria, contida por mobilizações populares e uma firme resposta do governo.

É impossível, dado o contexto histórico da América Latina, não fazer paralelos com a Venezuela de Nicolás Maduro.

Com as eleições venezuelanas prestes a acontecer, comentaristas da Jovem Pan orbitavam em torno de três alternativas para Maduro: ou aceitava a derrota, ou fraudava os resultados ou partia para o golpe. A amostragem é válida para a maioria dos meios empresariais de comunicação: a possibilidade de vitória de Maduro foi sumariamente descartada. Só havia um resultado possível: sua derrota.

Em entrevista concedida à Rádio Guaíba em 16 de agosto de 2023, o presidente Lula afirmou que não acha que a Venezuela seja uma ditadura: “é um governo de viés autoritário, mas não é uma ditadura como a gente conhece tantas ditaduras pelo mundo”. Se considerarmos que Maduro já sofreu derrotas eleitorais para a oposição, que governa cidades e estados (o que inclui redutos históricos do chavismo, como Barinas) e possui sólida representação no parlamento, Lula parece ter razão – apesar das posições vacilantes e equivocadas da diplomacia brasileira quanto ao assunto.

Na ‘ditadura’ venezuelana, grandes meios de comunicação de propriedade da oposição atuaram – e atuam – a torto e a direito contra Maduro, que, ao menos desde 2017, enfrenta pesadas sanções impostas pelos EUA. E eis o elefante na sala que os editoriais ignoram: a franca tentativa de inanição da Venezuela por meio de embargos econômicos. Em 2018, William Brownfield, ex-embaixador dos EUA no país, sugeriu que os EUA, organizações multilaterais e o Grupo de Lima acelerassem o colapso da Venezuela, “entendendo que isso terá um impacto em milhões e milhões de pessoas que já estão tendo grande dificuldade em encontrar o suficiente para comer”. Geram escassez e instabilidade econômica e exigem estabilidade política. A conta não fecha.

A Venezuela, então, se deparou com o roubo de suas reservas de ouro no Reino Unido, com o bloqueio de seus canais financeiros internacionais e com o fechamento dos mecanismos de venda de petróleo. O peso da noite caiu sobre seu povo, com um embargo contra 32 milhões de venezuelanos e que levou 40 mil deles à morte, segundo relatório do Centro de Pesquisa Econômica e Política sobre as consequências das sanções de Trump em 2017 e 2018. Estas sanções diminuíram bastante a disponibilidade de alimentos e medicamentos, impedindo que 80 mil pessoas com HIV usassem antirretrovirais e que outras 16 mil fizessem diálise regularmente. Outras 16 mil ficaram impedidas de receber tratamento contra câncer e 4 milhões com diabetes e hipertensão se viram privadas de receber insulina.

É neste contexto de obscena violação da Convenção de Genebra de 1949, que prevê como crime de guerra qualquer política que cause danos a toda uma população, que os holofotes estão no governo Maduro na expectativa de que, assim como Morales em 2019, demonstre o primeiro sinal de fraqueza para que os oligarcas de sempre possam atacar com força total, sempre certos de que contarão com a condescendência de governos e com a doçura dos grandes conglomerados de mídia.

As acusações contra Maduro nunca foram em nome da democracia, cuja defesa abstrata não passa de uma roupa que cabe em qualquer um.

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Última Atualização: 26/08/2024