O consumo de cannabis tem aumentado em todo o mundo. De 2002 a 2019, a prevalência na população dos Estados Unidos cresceu de 10,4% para 18%. Nesse período, a prevalência entre os que a consumiam todos os dias ou quase diariamente triplicou – foi de 1,3% para 3,9%.
Ao mesmo tempo, a percepção de que fumar cannabis pode fazer mal à saúde caiu de 50% para 28,6%, da população. Em outras palavras, três em cada quatro pessoas acham que é uma droga inofensiva, uma erva natural que não vicia nem afeta a saúde.
Enquanto foi considerada droga ilícita, o cannabis não teve liberdade para ser submetido ao rigor das pesquisas científicas.
Só nos últimos anos, com a legalização do uso medicinal e recreacional na Europa e nos Estados Unidos, começamos a entender melhor os mecanismos moleculares responsáveis pela ação psicoativa e as reações adversas associadas a ela.
Trabalhos mais recentes têm mostrado as repercussões psiquiátricas do uso compulsivo, a relação com complicações pulmonares – entre as quais o câncer de pulmão – e cardiovasculares, como infarto do miocárdio e acidente vascular cerebral (AVC).
Há vários motivos para suspeitar que fumar cannabis esteja ligado às doenças cardiovasculares, a principal causa de óbitos entre nós:
1. Existem receptores para endocanabioides espalhados pelas células do sistema circulatório inteiro.
2. É sabido que o tetrahidrocanabiol, o componente ativo do cannabis, causa alterações hemodinâmicas que podem levar à síncope, ao infarto do miocárdio e ao AVC.
3. A inalação do material particulado que alcança os pulmões do fumante de cannabis faz aumentar esse risco.
4. Em ratos fumantes passivos de cannabis ocorrem reações inflamatórias nas células das paredes internas dos vasos (endotélio), que são precursoras da doença cardiovascular.
Como fumar tabaco é prática frequente entre usuários de cannabis, os estudiosos sempre encontraram dificuldade para discriminar os malefícios causados por ambos, separadamente. A falta de dados levou muitos a jogar a culpa exclusivamente no cigarro convencional.
O Journal of the American Heart Association acaba de publicar um grande inquérito populacional sobre esse tema. Realizada em 27 estados e dois territórios americanos, no período de 2016 a 2020, a pesquisa reuniu mulheres e homens com idades de 18 a 74 anos.
O objetivo foi o de analisar uma possível associação de cannabis com doenças cardiovasculares – como infarto do miocárdio, derrame cerebral e doença coronariana – entre usuários da droga e de cigarros comuns ou eletrônicos, e em pessoas que fumam cannabis sem nunca ter fumado cigarros comuns ou eletrônicos.
O estudo avaliou 434.104 adultos que responderam a um questionário que procurou relacionar o número de cigarros de cannabis fumados nos últimos 30 dias, com a incidência de eventos cardiovasculares. A prevalência dos que fumavam cannabis todos os dias foi de 4% ante 7,1% entre os que não faziam uso diário.
O consumo diário ou quase diário de cannabis levou a um aumento de 16% no número de casos de doença cardiovascular, 25% nos casos de infarto do miocárdio e de 42% nos casos de AVC. Esses aumentos na prevalência guardaram relação direta com o número de baseados consumidos nos 30 dias anteriores.
Entre os participantes que nunca foram fumantes de cigarros comuns ou eletrônicos os aumentos ficaram ainda mais expressivos: 49% no número de infartos e mais que o dobro dos casos de AVC. Os resultados foram semelhantes tanto em homens com menos de 55 anos quanto em mulheres com menos de 65 anos, idades em que esses eventos cardiovasculares são considerados precoces.
Conclusões desse inquérito com mais de 430 mil participantes: fumar cannabis diariamente ou quase todos os dias aumenta o risco de desenvolver placas de aterosclerose nas artérias, ataque cardíaco e derrame cerebral. Quanto mais frequente é o uso, maior o risco. O risco mantém-se mais elevado mesmo em usuários que nunca fumaram cigarros convencionais ou eletrônicos.
Esses dados são importantes para que os usuários possam tomar decisões com base em informações confiáveis. O tempo em que cannabis era considerada “uma erva natural que não faz mal nenhum” ficou para trás.
Publicado na edição n° 1316 de CartaCapital, em 26 de junho de 2024.