Manifestantes participaram de protesto contra a PL 1904 na Praça do Ferreira,
no Centro de Fortaleza, na manhã do sábado, 15 de junho
Foto: Raquel Lima / Ascom Sinduece

Por Ana Luiza e Maria Eduarda
Da Página do MST

Recentemente, discussões sobre o acesso ao aborto inundaram os noticiários, as redes sociais e, para algumas de nós, invadiram, até mesmo, as conversas do cotidiano. O PL1904/2024 equipara a prática do aborto após 22 semanas, inclusive em casos de estupro, ao crime de homicídio. Apresentado pela Bancada Evangélica da Câmara dos Deputados, busca estabelecer um limite de idade gestacional para a prática do aborto legal, o qual não aparece no Código Penal.

Sabemos que no Brasil, 61% dos estupros são sofridos por meninas de até 13 anos, das quais mais do 74% são crianças negras (Anuário de Segurança Pública 2023) e menos do 4% dos municípios do país oferecem serviços de aborto legal. A demora no reconhecimento dos sinais de gravidez, o desconhecimento das disposições legais sobre o aborto e as dificuldades de acesso ao escasso número de serviços são os principais motivos para a procura do aborto após as 22 semanas. Foi por isso que o tema tomou não apenas os debates televisivos e virtuais, mas também as ruas, em uma sequência de atos em defesa do aborto legal em todo o Brasil.

Tamanha visibilidade e repercussão apenas foi possível em razão de uma aproximação de movimentos que historicamente não tinham o aborto e os direitos reprodutivos como pautas prioritárias. Ainda que central para o movimento feminista, transbordar as discussões sobre direitos reprodutivos nos leva a uma inevitável discussão: como a pauta dos direitos reprodutivos e outras agendas de direitos sociais e humanos se interseccionam? Qual a relação presente entre o acesso aos direitos reprodutivos e o acesso digno ao território e aos recursos naturais?

Para nós, a chave para a construção dessa correlação pode se resumir a um conceito: justiça reprodutiva. Cunhado pelo movimento de mulheres negras, o termo justiça reprodutiva propõe que o exercício dos direitos sexuais e reprodutivos seja pensado a partir de um contexto mais amplo, por meio do qual compreende-se que o acesso precário à terra, recursos naturais, educação, segurança alimentar e trabalho, por exemplo, impede que as mulheres façam as suas decisões reprodutivas com liberdade e autonomia.

A justiça reprodutiva tem colocado as desigualdades sociais que afetam a vida dessas mulheres no centro do debate público. É por isso que é uma proposta interseccional, na medida em que nos faz pensar como todas as violências de raça, classe social e gênero se interrelacionam e realimentam.

Não é casualidade que tenha sido formulada pelo movimento de mulheres negras; ela traz uma alerta para o caráter racista dos processos de esterilização forçada de mulheres negras, indígenas e latinas; bem como a ideologia do branqueamento que fundamenta as políticas de controle da natalidade que incentivam as famílias negras e pobres a “não terem filhos” ou a restringir seu número, responsabilizando esses grupos sociais pelas desigualdades históricas e estruturais.

Quem são as mulheres que podem ou não ser mães? Quem são as meninas obrigadas a prosseguir com gestações e perderem suas infâncias? Quem são as mulheres que são maltratadas nos serviços de saúde? Quem são as mulheres que têm maiores dificuldades para acessar informações sobre saúde reprodutiva? Quais seus rostos? Quais seus corpos? Quais as suas trajetórias de vida?

É, principalmente, nas comunidades rurais, indígenas, quilombolas, faveladas onde são produzidas e reproduzidas as múltiplas formas de violência contra mulheres e meninas, o que vulnera cotidianamente todos os direitos humanos, incluindo o direito à tomada de decisões sobre seus corpos e suas vidas.

A autonomia sobre nossos corpos é uma parte fundamental na vida sexual e reprodutiva. A decisão sobre querer ou não maternar deve ser tomada com liberdade, sem ameaças nem imposições de familiares, do Estado ou das Igrejas. Cada mulher tem a autoridade moral para ponderar qual a melhor decisão para sua vida, em função da sua história, da sua realidade, dos seus desejos e das suas crenças.

No entanto, só é possível pensar em autonomia e liberdade de escolha se a construção dela passar, necessariamente, pelo acesso a recursos que estão desigualmente distribuídos na sociedade.

Nesse contexto, resistir à privatização da terra, à destruição dos recursos naturais são formas de pensar e garantir o acesso à direitos reprodutivos. Por outro lado, também não há sentido garantir o acesso a esses recursos se não superarmos a violência contra nossos corpos e nossas vidas. É onde nossas lutas se encontram, é quando faz sentido entoarmos, juntas: “Lutaremos: Por nossos corpos e territórios, nenhuma a menos!”


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Last Update: 09/07/2024