Uma revoada de abonados pousou em Brasília nos últimos dias para fazer lobby contra as medidas alternativas preparadas no governo em substituição ao plano de elevar o Imposto sobre Operações Financeiras. Para fechar as contas federais e manter políticas públicas em 2025 e 2026, a equipe econômica havia colocado na praça, em 22 de maio, um pacote para conseguir 60 bilhões de reais com o aumento do IOF, tributo que Jair Bolsonaro e Paulo Guedes tinham resolvido, na saída de cena em 2022, tornar irrelevante. Houve esperneio e ranger de dentes entre a turma de sempre, ricos acostumados a pagar pouco ou nada de Imposto de Renda. O Congresso, claro, ficou sensibilizado com a situação desses pobres-coitados e ensaiou derrubar a MP do IOF. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, aceitou dar um passo atrás. Não desistiu, porém, de fazer com que os “moradores de coberturas” paguem a conta. Eis o motivo da romaria à capital federal.
A alternativa ao plano do IOF aumenta a taxação de vários negócios financeiros, de bancos digitais, de lucros empresariais distribuídos a acionistas e de bets, as casas de apostas esportivas online. A diferença é que a arrecadação será inferior aos 60 bilhões de reais desejados. Cerca de metade, conforme estimativas a circular na quinta-feira 12, após uma edição extra do Diário Oficial da União ter publicado, na véspera, um novo decreto sobre IOF e uma Medida Provisória. As propostas alternativas, tinha dito Haddad na terça-feira 10, “atingem os moradores de coberturas, pegam só gente que tem muita isenção fiscal (…), não mexem com o dia a dia da população”. Uma imagem repetida pelo ministro no dia seguinte, em uma tumultuada audiência pública na Câmara dos Deputados, encerrada graças a bolsonaristas enraivecidos, entre eles Nikolas Ferreira, do PL mineiro. “O morador da cobertura não paga condomínio e o zelador está pagando o condomínio do mesmo prédio”, afirmou Haddad.
O ministro, recorde-se, usou a mesma filosofia de que os ricos paguem a conta ao desenhar aquela proposta, enviada em março pelo governo ao Congresso, de dar isenção total de Imposto de Renda a salários de até 5 mil reais e parcial a quem ganha até 7 mil. Essas isenções beneficiam 15 milhões de trabalhadores e desfalcam o Erário em 25 bilhões de reais. Para compensar a perda de receita, a ideia é criar uma taxação adicional sobre 141 mil super-ricos, gente com renda superior a 50 mil mensais e que, na prática, paga só 2,5% de imposto. O projeto está aos cuidados do deputado Arthur Lira, ex-presidente da Câmara até fevereiro último. O partido do alagoano, o PP, quer mudar o projeto para aliviar a vida de quem embolsa de 50 mil a 150 mil mensais, e Lira gosta da ideia. Na quarta-feira 11, horas antes da publicação do pacote alternativo ao plano do IOF, o presidente do PP, senador Ciro Nogueira, do Piauí, havia dito no Congresso que seu partido não aceitaria o que estava a caminho. “Vamos agora traçar uma risca no chão.” De um lado da risca, quem topa elevar impostos. Do outro, quem não topa.
O plano alternativo ao IOF corre sérios riscos de naufragar no Parlamento
A “risca no chão” uniu o PP e o União Brasil, partidos que desde abril atuam de forma conjunta, via federação. Siglas que ocupam ministérios no governo, sinal do tamanho da encrenca que Haddad terá para aprovar o novo pacote. “Há uma revolta do andar de cima”, comentou o líder do PT na Câmara, Lindbergh Farias, do Rio de Janeiro, na audiência pública com o ministro. Para o deputado, Haddad tem tido “uma coragem que poucos tiveram ao longo da história, ao entrar no debate da injustiça tributária brasileira”.
No pacote alternativo, o governo propôs cobrar 5% de Imposto de Renda sobre os ganhos de quem investe em títulos privados hoje isentos como o LCI (negociados para destinar verba ao setor industrial) e o LCA (setor rural). As transações com criptomoedas, também isentas, vão pagar 17,5% de IR. A distribuição de juros sobre capital próprio, forma de dividir lucros empresariais entre sócios e acionistas, serão taxados em 20%, não mais em 15%. As fintechs, ou bancos digitais, que hoje podem pagar 9% de Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, a CSLL, terão de recolher ao menos 15%, alíquota aplicada aos bancos convencionais. A MP aproveitou e unificou em 17,5% o imposto sobre os rendimentos de quem investe em título público. Hoje, há uma escala variável entre 15% e 22,5%, a depender do tempo que o dinheiro ficou parado antes de ser sacado pelo aplicador.
Todas essas taxações haviam sido discutidas por cinco horas em 8 de junho, um domingo, por Haddad e os presidentes da Câmara, Hugo Motta, do Republicanos da Paraíba, e do Senado, Davi Alcolumbre, do União Brasil do Amapá, na residência oficial do primeiro. O presidente Lula estava na França e recebeu o ministro na terça-feira 10, na volta ao Brasil, para tomar pé da situação. Motta tinha dado sinais iniciais de boa vontade, mas depois mudou de tom, tornou-se mais evasivo. Obra possivelmente do lobby de endinheirados. A bancada dos fazendeiros foi uma das mais vocais contra o pacote alternativo, em razão da taxação das LCAs. Em nota pública, disse que o preço dos alimentos subiria. A posição da bancada ruralista foi uma das razões para a equipe econômica não ter dado uma entrevista coletiva sobre o pacote alternativo, segundo CartaCapital apurou.

Privilégio. O mercado evoca o fantasma do governo “gastador” e quer o sangue de aposentados e beneficiários de programas sociais – Imagem: Nelson Almeida/AFP
“Não tem nenhuma medida aí que do ponto de vista econômico não seja justa e não esteja corrigindo uma distorção”, disse Haddad na porta do ministério na manhã da quinta-feira 12, dia da conclusão desta reportagem. “Quem quer defender bet que venha a público, quem quer defender banco que venha a público”, prosseguiu ele, para quem o debate honesto e com dados será capaz de convencer o Congresso a aprovar as medidas, apesar do que ele descreveu como “lobbies mais rápidos do que o governo”.
No caso das bets, a Fazenda quer cobrar mais imposto a partir de outubro (quanto às mudanças no IR no setor financeiro, elas vão vigorar a partir de janeiro de 2026, se aprovadas). Hoje, as casas de apostas pagam 12% sobre a diferença entre o que arrecadam e o que dão de prêmio. Segundo Haddad, essa diferença é de, no mínimo, 40 bilhões de reais anuais. A alíquota de 18% tinha sido proposta pelo ministro em 2023. Naquela época, o Congresso não deixou passar. E agora? O termômetro do líder do governo na Câmara, José Guimarães, do PT do Ceará, mostra que a batalha será dura de novo. Para tentar dobrar o Legislativo, a equipe econômica prepara um relatório com números sobre o tamanho do “mercado” de apostas.
Outra esperança da Fazenda para emplacar a taxação maior das bets é a posição de dois grupos de peso: o varejo e as igrejas. Ambos fizeram chegar à equipe econômica sua insatisfação com a concorrência das bets pelos caraminguás dos brasileiros. A Confederação Nacional do Comércio é autora de uma ação de setembro de 2024 no Supremo Tribunal Federal que tenta derrubar a lei das bets, de 2023, a mesma, aliás, que prevê a taxação de 12%. Na ação, a CNC diz que o mercado de apostas online “vem desencadeando o endividamento das famílias”. A propósito, na terça-feira 10, a CPI das Bets, instalada em novembro no Senado, divulgou seu relatório final. Foram incriminados 14 nomes por ilícitos como estelionato e propaganda enganosa, entre eles a influenciadora digital Virginia Fonseca e a advogada Deolane Bezerra.
“Há uma revolta do andar de cima”, diz Lindbergh Farias, líder do PT na Câmara
Paralelamente à MP da taxação maior das bets, bancos e títulos, o governo baixou um novo decreto sobre IOF com um passo atrás em relação àquele de 22 de maio. A norma anterior promovia alterações de fôlego no tributo. E desfazia uma herança deixada por Bolsonaro e Guedes. A dupla tinha zerado diversas alíquotas do IOF, de forma escalonada, até 2029. A compra de dólar, taxada em 1,1%, e as compras internacionais com cartão de crédito, tributadas em 6,38%, teriam IOF zero a partir de 2028, por exemplo. Era um compromisso assumido com a OCDE, clube de países ricos e aspirantes, em troca de aval, à entrada do Brasil no organismo. Foi em 2022 que a entidade iniciou o processo de análise da adesão brasileira. O governo Lula não tem interesse em participar do grupo.
O decreto de maio havia desencadeado um coro de vozes contrárias que uniu o bolsonarismo, o “Centrão”, a Faria Lima e a mídia. Quase 20 propostas foram apresentadas no Congresso para anular o decreto. Teve início uma maratona de reuniões. Em 28 de maio, Haddad sentou-se com os presidentes da Câmara e do Senado. Em 3 de junho, ele e Lula estiveram com o deputado e o senador no Palácio da Alvorada. Cinco dias depois, nova conversa de Haddad com Motta e Alcolumbre, desta vez na residência oficial do presidente da Câmara.
No decreto de agora, o governo desistiu de elevar o IOF de 0,38% para 0,95% em operações de crédito entre pessoas jurídicas e em transações do chamado risco sacado, espécie de antecipação de recursos feita por bancos a fornecedores de empresas. Insistiu, porém, em cobrar mais em aportes feitos em planos de previdência privada do tipo VGBL, só mudou um pouco a fórmula. O VGBL tem atraído, segundo fontes da equipe econômica, ricaços que antes guardavam dinheiro em fundos offshore. Estes passaram a ser tributados no governo Lula, em outro lance de Haddad de “jogar a conta para o andar de cima”. •
Publicado na edição n° 1366 de CartaCapital, em 18 de junho de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Luta de classes’