Presidente brasileiro faz declarações contundentes sobre soberania, dólar e guerras mundiais durante entrevista coletiva no Rio de Janeiro.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva encerrou a 17ª Cúpula do BRICS no Rio de Janeiro com uma das declarações mais contundentes de seu terceiro mandato contra o que considera práticas imperialistas no cenário internacional. Durante coletiva de imprensa realizada na tarde desta segunda-feira, o petista não poupou críticas ao sistema de governança global atual e fez declarações diretas sobre soberania nacional, hegemonia do dólar e conflitos mundiais.

Resposta direta a Trump: “Não queremos imperador”

A declaração mais incisiva de Lula veio em resposta a uma pergunta do jornalista Carlos Menezes, da Agência F, sobre as ameaças tarifárias do presidente americano Donald Trump contra países que se alinharem às “políticas anti-americanas dos BRICS”.

“Eu sinceramente nem acho que eu deveria comentar. Porque eu não acho uma coisa muito responsável e séria, um presidente da República de um país do tamanho dos Estados Unidos, ficar ameaçando o mundo através da internet”, disparou Lula. “Ele precisa saber que o mundo mudou. Não queremos imperador. Nós somos países soberanos.”

O presidente brasileiro foi ainda mais direto ao abordar a questão da reciprocidade: “Se ele achar que ele pode taxar, os países têm o direito de taxar também. Existe a lei da reciprocidade.” E concluiu com uma frase que sintetiza sua visão sobre soberania: “É preciso que as pessoas leiam o significado da palavra soberania. Cada país é dono do seu nariz.”

Quando a jornalista Camila Zaru, do Valor Econômico, questionou sobre possíveis medidas diplomáticas em resposta aos acenos de Trump ao ex-presidente Bolsonaro, Lula foi categórico: “Esse país tem lei, esse país tem regra e esse país tem um dono chamado povo brasileiro. Portanto, dêem palpite na sua vida e não na nossa.”

Crítica feroz ao sistema financeiro internacional

Uma das passagens mais contundentes da coletiva foi quando Lula abordou a questão das moedas locais e a hegemonia do dólar. Respondendo à jornalista Simone Iglesias, da Bloomberg, o presidente foi enfático sobre a necessidade de mudança no sistema financeiro internacional.

“Ninguém determinou que o dólar é a moeda padrão. Em que fórum foi determinado?”, questionou Lula, antes de afirmar: “Eu acho que o mundo precisa encontrar um jeito de que a nossa relação comercial não precise passar pelo dólar. Quando for com os Estados Unidos, ela passa pelo dólar. Mas quando for com a Argentina, não precisa passar. Quando for com a China, não precisa passar.”

O presidente foi categórico sobre o futuro deste processo: “É uma coisa que não tem volta. Isso vai acontecendo aos poucos e vai acontecendo até que seja consolidado.”

Lula também criticou duramente o Fundo Monetário Internacional: “A gente não quer mudança no FMI porque eu não gosto do FMI. A gente quer mudança no FMI para o FMI ser um banco de investimento para atender a necessidade dos países mais pobres. Não é para emprestar dinheiro e levar os países à falência, como tem acontecido, porque o modelo de austeridade que tem sido feito com outros países é fazer com que a dívida seja impagável cada vez mais.”

Denúncia do Conselho de Segurança como “promotor de guerras”

Uma das críticas mais duras de Lula foi direcionada ao Conselho de Segurança da ONU, que ele acusou de ser promotor das guerras que deveria evitar. “O que é mais grave é que o Conselho de Segurança da ONU, que deveria ser o paradigma para tentar evitar que essas guerras acontecessem, eles são os promotores”, declarou.

O presidente listou conflitos específicos: “Desde a guerra do Iraque, desde a invasão da Líbia, da morte do Gaddafi, até a guerra com a Ucrânia, ou seja, ninguém pede licença para fazer guerra, vai tomar decisão e vai fazendo. E depois a ONU perde credibilidade e autoridade para negociar.”

Sobre a situação em Gaza, Lula foi particularmente contundente: “O que está acontecendo em Gaza já passou da capacidade de compreensão de qualquer mortal no planeta Terra. Dizer que aquilo é uma guerra contra o Hamas? E só se matam inocentes, mulheres e crianças? E cadê a instituição multilateral para colocar um fim nisso? Não existe.”

Crítica à falta de representatividade global

Lula questionou diretamente a composição do Conselho de Segurança da ONU, baseada na geopolítica de 1945: “Qual é a explicação de uma Índia não estar no Conselho de Segurança da ONU? De um país como o Brasil? Ou México? Ou a Nigéria, que tem 240 milhões de habitantes? Ou a Etiópia, que tem 120 e poucos milhões de habitantes, ou o Egito, que tem mais de 100 milhões de habitantes, ou a África do Sul, qual é a explicação? Nenhuma.”

Sua conclusão foi direta: “Os que ficaram no Conselho de Segurança em 1945 não querem sair e não querem permitir que outros entrem.”

BRICS como alternativa ao sistema atual

O presidente apresentou o BRICS como uma alternativa ao que considera um sistema falido: “Nos BRICS, a gente tem convicção que a gente não quer mais um mundo tutelado. A gente não quer mais guerra fria. A gente não quer mais desrespeito à soberania. A gente não quer mais guerra.”

Lula foi enfático ao afirmar que o BRICS representa uma mudança paradigmática: “O BRICS é apenas um outro modelo, um outro modo de fazer política, uma coisa mais solidária. Que o banco esteja muito mais preocupado em ajudar os países em desenvolvimento a se desenvolver, os países mais pobres.”

Sobre a reação que o bloco tem causado, o presidente foi direto: “E eu acho que, por conta disso, o BRICS está incomodando. Está incomodando. O que era o mundo antes do BRICS?”

Crítica à concentração de poder na inteligência artificial

Lula também direcionou críticas ao controle da inteligência artificial por poucas empresas: “É preciso que a gente, nos BRICS, crie um sistema de discussão em que todos possam ter acesso à inteligência artificial. Ela não pode ser uma coisa de dominação de meia dúzia de empresas que vão controlar os bancos de dados no mundo.”

O presidente defendeu o papel do Estado na regulação: “O Estado é quem tem que assumir a responsabilidade de garantir que não se usa banco de dados para fazer guerra, para contar mentira, para contar inverdade.”

Assembleia da ONU como “shopping de produtos ideológicos”

Em uma das metáforas mais contundentes da coletiva, Lula comparou a Assembleia Geral da ONU a um “shopping de produtos ideológicos”: “Todo ano a gente vai para a Assembleia Geral da ONU e cada presidente faz o discurso que quer e vai embora. Não escuta o outro e cada um fala e vai embora. É como se fosse um shopping de produtos ideológicos. Cada um vende o que quer, compra o que quer, sem nenhum compromisso.”

Proposta de unificação dos fóruns multilaterais

Lula chegou a sugerir uma fusão dos principais fóruns multilaterais: “Eu, sinceramente, acho que a gente até deveria convidar os países, porque nós já somos 10 do G20 nos BRICS. É só convidar os outros 10 para vir para o BRICS. Aí fica uma coisa só, todo mundo discute o mesmo assunto. Não precisa ter G7, ter G20, fazer uma coisa só todo mundo, que poderia ser a ONU.”

Contexto geopolítico

As declarações de Lula ocorreram após a conclusão da 17ª Cúpula do BRICS, que pela primeira vez reuniu 11 membros titulares e 10 países parceiros, além de 8 países convidados. O bloco, que representa metade da população mundial e 44% do PIB global em paridade do poder de compra, tem se posicionado como alternativa ao sistema de governança global liderado pelo Ocidente.

Durante a coletiva, que contou com a participação de jornalistas brasileiros e estrangeiros, incluindo representantes do New York Times e Bloomberg, Lula deixou claro que o Brasil e o BRICS não aceitarão mais um mundo “tutelado” pelas potências tradicionais.

As declarações do presidente brasileiro ecoam um momento de tensão geopolítica crescente, com conflitos em múltiplas frentes e questionamentos sobre a eficácia das instituições multilaterais criadas após a Segunda Guerra Mundial. O tom contundente de Lula sinaliza uma postura mais assertiva do Brasil na defesa de uma nova ordem mundial multipolar.

Reportagem baseada na coletiva de imprensa realizada no Rio de Janeiro após a 17ª Cúpula do BRICS, com participação dos jornalistas Carlos Menezes (Agência F), Camila Zaru (Valor Econômico), Ana Ionova (New York Times), Simone Iglesias (Bloomberg), Bruno (Agência Brasil) e Carla Parelo (Marcha Notícias).

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Last Update: 07/07/2025