
Lula reúne o Sul Global em defesa do multilateralismo
por Maria Luiza Falcão Silva
Um encontro virtual, mas de peso histórico
No dia 8 de setembro de 2025, o Brasil escreveu mais um capítulo importante de sua diplomacia. Convocado por Lula, na condição de presidente pro tempore do BRICS+, o encontro extraordinário do grupo reuniu virtualmente líderes de Brasil, China, Rússia, Índia, África do Sul (representada por seu chanceler), além dos novos atores do grupo expandido, Egito, Indonésia, Irã, Emirados Árabes Unidos e Etiópia.
A reunião, embora online, teve impacto real: colocou no mesmo espaço político e simbólico países que hoje concentram 40% do PIB mundial, 26% do comércio internacional e quase metade da população do planeta. Foi um gesto de afirmação do Sul Global diante das pressões unilaterais que partem de Washington.
Lula: propostas concretas para refundar o multilateralismo
Em sua fala, Lula foi categórico: “O BRICS já é o novo nome da defesa do multilateralismo.” Lembrou que as estruturas criadas em 1945 — ONU, OMC, Banco Mundial, FMI — estão sendo corroídas pela irresponsabilidade das potências ocidentais, incapazes de oferecer respostas às crises.
O presidente brasileiro lançou propostas ousadas:
- Criação de um Conselho de Mudança do Clima na ONU, a ser debatido na COP30 em Belém;
- Fundo Florestas Tropicais para Sempre, mecanismo de remuneração aos países que protegem biomas essenciais;
- Governança digital democrática, contra a concentração de poder em poucas big techs;
- Ampliação do Conselho de Segurança da ONU, com inclusão de países da América Latina, África e Ásia.
Sua mensagem foi inequívoca: “Dividir para conquistar é a estratégia do unilateralismo. Cabe ao BRICS mostrar que a cooperação supera qualquer forma de rivalidade.”
Lula lembrou que o comércio e a integração financeira entre os países emergentes oferecem uma alternativa sólida às chantagens tarifárias e sanções extraterritoriais impostas pelo governo Trump. E convocou os parceiros a chegarem unidos à 14ª Conferência Ministerial da OMC, no Camarões, em 2026.
Fêz referência à Cúpula do G20 que se realizará na África em novembro, sob a presidência sul-african ressaltando-, como “espaço para um diálogo abrangente sobre os possíveis caminhos para a ordem internacional.”
“O unilateralismo jamais conduzirá à realização dos propósitos de paz, justiça e prosperidade que nossos antecessores delinearam em 1945” disse Lula concluindo sua fala.
Xi Jinping: resistir ao protecionismo
De Pequim, o presidente Xi Jinping ecoou as palavras de Lula. Ele pediu que os países do BRICS “resistam ao protecionismo e explorem suas vantagens complementares”, aprofundando a cooperação em comércio, finanças e tecnologia.
Xi foi direto ao ponto: “Quanto mais estreita for a cooperação, mais confiança, opções e resultados efetivos teremos contra os desafios externos.” Sua fala reforçou a crítica ao uso de tarifas e sanções como instrumentos políticos e destacou que apenas um sistema internacional baseado em regras pode garantir estabilidade.
Na prática, Xi alinhou a posição chinesa com a brasileira: cooperação contra o isolacionismo, integração produtiva contra o cerco unilateral.
Índia: comércio aberto e previsível
A ausência de Narendra Modi foi compensada pela presença do ministro das Relações Exteriores, S. Jaishankar, que transmitiu uma mensagem firme. “O mundo busca um ambiente estável e previsível para comércio e investimento”, afirmou, acrescentando que é imperativo que as práticas econômicas sejam justas, transparentes e benéficas para todos.
Num contexto em que tarifas unilaterais dos Estados Unidos atingem inclusive parceiros estratégicos como a Índia, Jaishankar alertou: “Não compliquemos ainda mais um cenário global já desafiado”. O recado deixou claro que a Índia, embora cuidadosa, compartilha da crítica ao protecionismo norte-americano e valoriza a estabilidade que só pode vir de uma ordem multilateral renovada.
Putin: energia e finanças na agenda
De Moscou, o presidente Vladimir Putin destacou a necessidade de fortalecer a cooperação energética e de avançar em alternativas ao dólar. Reafirmou o papel do Novo Banco de Desenvolvimento do grupo como ferramenta de soberania econômica e defendeu que os países do BRICS ampliem as trocas em moedas nacionais.
Sua fala, trazendo à tona a questão do enfrentamento a Trump a partir de um dos temas que mais irrita o presidente dos Estados Unidos – o uso de moedas alternativas ao dólar no comércio internacional – foi pragmática e reforçou o consenso: “o uso do comércio e da moeda como armas políticas ameaça a estabilidade global e obriga os emergentes a buscarem caminhos próprios.”
O coro do Sul Global
Estiveram também representados África do Sul, Egito, Indonésia, Irã, Emirados Árabes Unidos e Etiópia. Embora não tenham sido divulgados detalhes de suas falas, a presença ativa desses países evidencia o caráter ampliado e cada vez mais representativo do BRICS. Não se trata mais de um clube de cinco países emergentes: é hoje o principal polo de articulação do Sul Global.
Lula como articulador internacional
A reunião extraordinária mostrou que Lula conseguiu reunir consensos em torno de temas decisivos: comércio justo, soberania digital, transição climática, ampliação do Conselho de Segurança da ONU.
Mais do que anfitrião, foi articulador. Conseguiu projetar o Brasil como voz crível e necessária na construção de um mundo multipolar, em que a cooperação prevaleça sobre a rivalidade.
O caminho está lançado: em duas semanas, na 80ª Assembleia Geral da ONU em Nova York, Lula pretende levar essa voz coletiva do Sul Global. E, dois meses depois, na COP30 em Belém, apresentará o Brasil como plataforma de convergência entre clima, desenvolvimento e justiça social.
Um contraponto ao unilateralismo
Em um mundo marcado por tarifas abusivas, guerras prolongadas e ameaças de anexações, Lula mostrou que é possível traçar outro horizonte. O encontro virtual do BRICS foi a demonstração de que há alternativa ao unilateralismo e que ela passa pelo Sul Global.
Nas palavras do presidente brasileiro: “Temos a legitimidade necessária para liderar a refundação do sistema multilateral de comércio em bases modernas, flexíveis e voltadas às nossas necessidades de desenvolvimento.”
Na arena internacional, o Brasil do presidente Luiz Inácio Lula da Silva retorna como gladiador da diplomacia, não para servir a impérios, mas para lutar por uma ordem mais justa e multipolar.
Maria Luiza Falcão Silva é economista (UFBa), MSc pela Universidade de Wisconsin – Madison; PhD pela Universidade de Heriot-Watt, Escócia. É pesquisadora nas áreas de economia internacional, economia monetária e financeira e desenvolvimento. É membro da ABED. Integra o Grupo Brasil-China de Economia das Mudanças do Clima (GBCMC) do Neasia/UnB. É autora de Modern Exchange-Rate Regimes, Stabilisation Programmes and Co-ordination of Macroeconomic Policies: Recent experiences of selected developing Latin American economies, Ashgate, England/USA.
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