De frente pro crime

As facções que se acertam com a Faria Lima são as mesmas que impõem terror nos territórios que controlam.

Por Luis Felipe Miguel*, em seu blog

A operação policial contra o eixo PCC-Faria Lima dá um alento à esperança de avançarmos em uma questão crucial, mas em que estamos empacados há muito tempo: o império crescente do crime organizado sobre a sociedade brasileira.

Um estudo de pesquisadores estadunidenses estimou que 26% dos brasileiros vivem sob regras de facções criminosas, isto é, em áreas ao menos parcialmente dominadas por narcotraficantes, milicianos e outras máfias. Seria o maior percentual da América Latina, o dobro do segundo colocado (Costa Rica) e muito acima de países como Colômbia ou México, sempre citados como exemplos de Estados com controle muito débil de seus territórios.

Não li a pesquisa e tenho um pé atrás metodológico com a fonte de seus dados, os surveys do Latinobarómetro. Mas, mesmo sem bater o martelo nos 26% (mais de uma em cada quatro pessoas), é óbvia a capacidade que o crime tem de impor sua autoridade em muitos espaços de qualquer cidade de grande ou mesmo de médio porte no Brasil.

E este poder se estende pelos nexos do crime organizado com o poder econômico “convencional”, por assim dizer, que a operação da semana passada ajudou a iluminar, e igualmente com o poder político – no Legislativo, no Executivo e também no Judiciário. Não há dúvida de que se trata de um problema de primeira grandeza. É a captura do Estado pelas facções criminosas.

Atribui-se à esquerda, não sem um fundo de verdade, certa despreocupação com as questões de segurança pública.

O discurso que liga a motivação para a delinquência às condições sociais é necessário, para dar complexidade ao problema, para deixar claro que sem mudanças estruturais qualquer solução será paliativa, para combater a abordagem fácil do punitivismo que se limita à responsabilização individual. Mas, embora necessário, ele é insuficiente.

Primeiro, porque continua sendo urgente encontrar soluções para a situação de insegurança que aflige, em primeiro lugar, as populações mais pobres. E também, de forma mais profunda, porque o reconhecimento da injustiça social não pode levar até a abolição pura e simples da responsabilidade individual.

Sim, somos todos frutos do meio, das circunstâncias, da socialização, mas a sociedade não tem como se ordenar caso, a partir de certo ponto, não consideremos que as pessoas são responsáveis pelo que fazem. Não dá para colocar no mesmo saco quem comete um furto famélico e quem faz um arrastão em um condomínio. Não dá para perdoar o estuprador dizendo que ele é uma vítima do machismo que o formou. Não vamos anistiar Bolsonaro porque, afinal, ele foi criado em um ambiente de valores autoritários e sob a filosofia de que “tem que levar vantagem em tudo”.

Muitos na esquerda ainda insistem em declarações lacradoras, do tipo “eu defendo o assaltante”, sabendo perfeitamente bem que elas serão descontextualizadas e servirão de combustível para o punitivismo da direita.

Ou como o influenciador Chavoso, em sua oitiva na Câmara Municipal de São Paulo, na quinta passada. Articulado como sempre, deu algumas boas respostas ao vereador Rubinho Nunes, de notória ficha corrida. Não faltou quem, à esquerda, exaltasse sua performance. Mas, quando afirmou que “o crime organizado nada mais é do que um efeito colateral das políticas do próprio Estado, políticas de genocídio, de extermínio, de encarceramento em massa”, ele contradisse seu próprio discurso, equivalendo implicitamente “crime” e “periferia”, e adotou uma leitura quase tão simplificadora quanto a da direita.

De um lado, a extorsão contra moradores, os abusos contra mulheres, a tortura e a execução de recalcitrantes; do outro, a fraude aos consumidores, a lavagem de dinheiro, a sonegação de impostos – tudo isso é simples “efeito colateral” das políticas de encarceramento em massa? E os integrantes do crime organizado nas altas rodas, que aliás se ligam intimamente com os bandidos de origem pobre que vemos no noticiário policial, como a Operação Carbono Oculto ajudou a mostrar, a gente também livra a cara deles com esta retórica?

A visão romântica do bandido como “rebelde primitivo” casa muito mal com a estrutura empresarial do crime organizado. De forma provocativa, eu diria que ele, o crime orgaizado, é melhor entendido como uma fração do capital: o “capital criminoso”, que estabelece seus laços com outras frações e que busca seu lugar ao sol no bloco no poder.

Infiltra-se no aparelho de Estado colocando alguns de seus integrantes nos parlamentos e nos primeiros escalões de prefeituras e governos ou, então, cooptando políticos já estabelecidos, que entram para sua folha de pagamento. Junta-se ao capital financeiro na lavagem de dinheiro. Estende seus tentáculos pelo comércio e pelo serviços, como temos visto. Explora a mão de obra de suas atividades legais e ilegais e usa seus recursos de violência direta para aterrorizar e extorquir quem vive à sua sombra, tal como o latifúndio faz no interior desse Brasil.

Embora praticamente nenhuma força política esteja imune à sua influência, a predileção do crime organizado é igual à do agro: é pelos partidos de direita. Para não me deixar mentir, está aí Jair Bolsonaro, chefe inconteste da direita brasileira, cuja conexão com as milícias fluminenses é conhecida por todos. Ou, então, o deputado Nikolas Ferreira, cujo papel de possível porta-voz do crime organizado na campanha contra a fiscalização do Pix agora foi desvelado – embora, em nome da prudência, eu deva apresentar a ressalva de que ainda está em aberto o peso relativo da vontade de favorecer as facções e do simples oportunismo político.

No Judiciário, não é diferente. No Supremo, que é lugar de poucos inocentes, o bolsonarista Kássio Nunes é o homem que garante a liberdade do banqueiro de bicho e assassino Rogério de Andrade. E também, aliás, como mostrou uma reportagem da Piauí de julho, quem garante as costas quentes dos bandidos das bets.

Muitos à direita vão buscar bloquear as investigações sobre os nexos do PCC com o mundo das finanças – e da política. A esquerda tem uma boa chance de, ao combatê-los, reposicionar seu discurso sobre segurança pública. Mas precisa fazê-lo com ponderação.

Não é possível aceitar qualquer tolerância com as facções, que precisam ser reconhecidas como o que são: máfias milionárias que impõem uma opressão bárbara sobre as comunidades que controlam.

Quando a deputada Erika Hilton, no afã da lacração, publicou um aceno a Oruam, o filho do chefe do Comando Vermelho, convidando-o a estudar e se juntar à luta popular, não cometeu apenas um erro de relações públicas. Foi uma irresponsabilidade política, já que ela sabe perfeitamente que a ilusão robin-hoodesca do “bom bandido” não tem lugar no mundo do narcotráfico de gestão empresarial.

Em seguida às prisões do MC Poze do Rodo e de Oruam, também não faltou quem negasse a associação de vários funkeiros com as facções criminosas, afirmando despreocupadamente que nada acontece, que funkeiros que tatuam rostos de torturadores, que incentivam que jovens se tornem aviões do tráfico e que fazem apologia da violência são “transgressores” e “antissistema”. Que os bailes funk, uma vez que são alvo de preconceitos e de tentativas de criminalização, são isentos de problemas, sofrendo, segundo alguns, uma espécie de reedição da perseguição racista contra as rodas de samba no começo do século passado.

Surpreende a cara de madeira de igualar Cartola, artista genial que viveu modestamente como trabalhador, a Oruam, herdeiro milionário do dinheiro do tráfico e garoto-propaganda das apostas online. (Sem falar na qualidade musical, que vou deixar como “questão de gosto” e não discutir.) Mas isto, claro, é só canalhice intelectual.

Negar a relação de celebridades do funk com o crime organizado (que é diferente de denunciar o caráter seletivo da criminalização do funk, que esquece, por exemplo, o vínculo de ícones do sertanejo universitário com vários tipos de alta bandidagem) é conceder à direita o monopólio de expressar um fragmento da realidade. Não ganhamos nada com isso.

O entusiasmo por Oruams e quetais faz lembrar alguns expoentes da contracultura, na segunda metade do século passado, que exaltavam Charles Manson julgando que a brutalidade gratuita que ele comandou expressava a revolta contra a sociedade capitalista. Eles, pelo menos, tinham a desculpa de estar com o cérebro encharcado das drogas psicodélicas que então faziam sucesso – observação que vale tanto para Manson quanto para seus tietes. Hoje, nem isso.

Volto a perguntar o que eles diriam à jovem Sther Barroso dos Santos, de 22 anos, que foi retirada de um baile funk e morta a pauladas depois que se recusou a fazer sexo com “Coronel”, gerente do Terceiro Comando Puro na sua comunidade. Seus assassinos são apenas vítimas do sistema e parceiros em potencial numa revolução futura?

A pergunta é retórica, claro. Não diriam nada. Para a direita, sempre, mas parece que hoje também para uma parte da esquerda cirandeira, a pauta dos direitos das mulheres não vale um tostão furado, eclipsada que foi por questões mais “da hora”.

Repito o que escrevi outro dia. Não é difícil ver que as facções e as milícias impõem novas opressões às populações que estão submetidas a elas. Não aliviam, mas somam-se àquelas derivadas do capitalismo, do sexismo, do racismo.

A esquerda que pensa menos em lacração e mais em se comunicar com as pessoas e – sobretudo – em mudar o mundo tem que estar à altura da oportunidade e organizar um projeto sensato, coerente e efetivo para o combate à criminalidade.

* * *

Para proveito das novas gerações, esclareço que o título deste texto remete a uma canção genial de João Bosco e Aldir Blanc, que pode ser encontrada na voz do próprio João Bosco, de Simone, de Joyce, do MPB-4, de Badi Assad – e em uma excelente versão instrumental dos grandes Romero Lubambo e Rildo Hora.

*Luis Felipe Miguel é professor de Ciência Política da Universidade de Brasília. Coodenador do Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê).

Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.

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Last Update: 01/09/2025