Anistia ou democracia?
Recuar diante da pressão dos golpistas é enfraquecer a defesa da democracia
Por Luis Felipe Miguel, em seu Substack
Na Folha da terça passada, Joel Pinheiro da Fonseca elogiou a nova proposta de anistia aos golpistas – ou melhor, redução das penas – com base em uma peculiar teoria da democracia.
Com a desenvoltura de quem passou de defensor de radical ensandecido a direitista quase progressista, afirma que o que caracteriza a democracia é a obtenção de consensos e que, portanto, o meio termo entre punição rigorosa e liberou geral seria a solução democrática para a questão.
“Democracia é saber negociar e chegar a soluções de meio do caminho”, pontifica o colunista do jornal paulistano, como base naquela célebre bibliografia: CABEÇA, Vozes da Minha (2025).
Fica claro que Joel ainda não conseguiu se livrar da forma de pensar – ou do “mindset”, para usar uma palavra que certamente seria mais seu agrado – do ultraliberalismo mais primário.
Uma das características desta corrente de pensamento e a incapacidade de levar em conta a complexidade do mundo, julgando que é necessário estabelecer um único critério e se aferrar a ele em todas as circunstâncias.
Assim, se julgamos que as pessoas devem ser envolvidas na tomada de decisões que vão afetá-las, até a escolha de com quem você vai se casar teria que ser tomada assembleia, já que que serão afetados todos os outros pretendentes, os pretendentes dos pretendentes e assim por diante. (Este era o exemplo que o Robert Nozick usava para justificar sua ojeriza ao método democrático)
Quer dizer: o ultraliberal é incapaz de operar uma distinção entre questões de foro pessoal e questões de interesse público.
Ou, então, se julgamos que o indivíduo deve ter autonomia sobre seu próprio corpo, devemos permitir que ele venda a si mesmo como escravo, como queria também Nozick – ou que venda seus rins e córneas, como pregava o Joel mais jovem.
No caso, opera uma incapacidade de entender a relação entre escolhas e circunstâncias, que, no entanto, é crucial para avaliar as formas de opressão e desigualdade que imperam no mundo social.
Da mesma maneira, é claro que a democracia, cujo gesto inaugural, como disse Claude Lefort, é o reconhecimento da legitimidade do conflito na sociedade, precisa incorporar mecanismos de negociação entre partes divergentes.
Isso não justifica, porém, a conclusão de que alcançar soluções de compromisso é a essência da democracia. Ela inclui também muitos outros valores, como, por exemplo, a igualdade, o respeito aos pactos instituídos, a oposição às formas de dominação vigentes.
Se fosse como Joel pensa, poderíamos imaginar que a forma democrática de lidar com um nazista é encontrar uma “solução de meio de caminho”. Quem sabe, pactuar que será assassinada só metade dos judeus. Ou, negociando com o sionista, chegaríamos à solução “democrática” de eliminar apenas metade do povo palestino.
O que está em jogo na proposta de anistia aos golpistas é o direito que a democracia tem de defender a si mesma.
Buscar um meio-termo para este direito é incentivar novas tentativas de virar a mesa, por parte da extrema-direita.
Que fique claro: desde que Aécio foi condenado (não o Neves, que continua leve, livre e solto, apesar de tudo que existe contra ele, mas Aécio Lúcio Costa Pereira, o primeiro dos julgados pelo 8 de janeiro), eu me manifestei dizendo que as penas aplicadas à massa de manobra eram excessivas.

Nicolas-André Monsiau, O leão de Florença (1801)
São inocentes? Não, claro que não.
Mas existe uma diferença entre planejar, financiar e incentivar um golpe de Estado e apenas integrar a multidão de teleguiados, com a atenuante da imbecilidade profunda.
O que eu temia se realizou – e era óbvio. A direita escolheu um dos réus, no caso uma ré, para usar como exemplo da crueldade do Judiciário brasileiro.
De um lado, a pobre cabeleireira, mãe de família, armada apenas de um batom. Do outro, a figura lexluthoriana de Alexandre de Moraes, controlando todos os recursos do aparelho repressivo do Estado brasileiro. Vamos reconhecer: é uma narrativa bem-preparada.
Penas mais modestas para os bagrinhos, assim, responderiam tanto ao sentido de justiça quanto à conveniência política. Mas Xandão, movido por maus conselheiros ou talvez por sua própria prepotência, preferiu esticar a corda.
Um erro que alimenta a agitação em favor da impunidade, por parte do núcleo pensante (contém ironia) do golpismo bolsonarista.
Só que agora não dá para recuar. O projeto de semi-anistia que está sendo urdido por Davi Alcolumbre e Hugo Motta, com a simpatia de parte do Supremo e mesmo do governo Lula, legitima a pressão da extrema-direita.
Creio que qualquer redução das penas aplicadas aos bolsonaristas que invadiram a Praça dos Três Poderes só pode ser discutida depois que os cabeças estiverem na cadeia. Para não confundir clemência com impunidade.
* * *
Joel justifica seu apoio à proposta tramada pelos presidentes das duas casas do Congresso em nome também da superação da “polarização”. “Dois polos se odeiam e arrastam consigo o resto do país”, lamenta o colunista.
E, como de costume nessa retórica, fica implícito que os polos são simétricos. Como se as ameaças à democracia e aos direitos viessem de ambos os lados. Como se, a uma direita radicalizada ao ponto da hidrofobia, não se contrapusesse uma esquerda completamente abaunilhada.
Como se fosse uma escolha muito difícil, em suma.
Líder do governo no Congresso, o agora petista Randolfe Rodrigues vai em linha similar – com muito maior gravidade, dadas as suas responsabilidades. Enaltece a ideia da redução das penas, vendo nela “a mão estendida para a conciliação nacional”.
O preço da conciliação é manter a democracia sob ameaça. E isto é aceito, naturalizado, festejado pelo governo que nós elegemos tendo como tarefa principal recompor e fortalecer a nossa combalida democracia.
Tá osso.
* * *
No jornal de hoje, os argumentos de Joel são reforçados pelo Elio Gaspari.
Talvez pela cancha que a idade lhe dá, com uma larga experiência nas artes da patifaria jornalística, o devoto-mor de São Golbery chega ao ponto de equivaler Débora Rodrigues dos Santos, a cabeleireira que vandalizou a estátua da Justiça na Praça dos Três Poderes, a Caio Prado Júnior, o historiador e editor que foi preso na última ditadura militar.
E ainda teve o desplante de equiparar Luiz Fux – sim, Fux! – a Sobral Pinto, o heroico advogado que levantou sua voz em defesa dos direitos humanos durante o Estado Novo e a ditadura de 1964.
É um texto de uma má-fé que seria surpreendente, se não soubéssemos quem o assina.
*Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê (@demode.unb). Autor, entre outros livros, de Democracia na periferia capitalista: impasses do Brasil (Autêntica)
*Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.
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