O anúncio esperado de uma alternativa ao aumento do Imposto sobre Operações Financeiras, proposto pelo Ministério da Fazenda e bombardeado por empresários, parlamentares e mídia, foi convertido, na quarta-feira 4, em um aceno na direção de um acordo entre o Congresso e o governo em torno de medidas de longo prazo para dar sustentabilidade ao arcabouço fiscal e às contas públicas. O ministro Fernando Haddad, o vice-presidente Geraldo Alckmin e os presidentes Hugo Motta, da Câmara, e Davi Alcolumbre, do Senado, reiteraram em entrevista coletiva o compromisso de aprovação de um pacote que permita o cumprimento das metas estabelecidas pela própria equipe econômica. Antes de embarcar para a França, onde cumprirá extensa agenda, Lula deu aval às negociações. Um dia antes, em entrevista a jornalistas no Palácio do Planalto, o presidente fez um afago no ministro ao minimizar os efeitos da proposta de aumento do IOF. “Não acho que tenha sido um erro, não (…) Em nenhum momento o companheiro ­Haddad teve qualquer problema.”

O próximo passo é ouvir os líderes das bancadas. A reunião de Motta e Alcolumbre com deputados e senadores está agendada para o domingo 8. Se tudo correr como esperado, os detalhes do plano serão divulgados na próxima semana. “Preciso da aprovação de ao menos uma parte das medidas para rever o decreto do IOF”, ressaltou Haddad. A rejeição à alta do tributo “foi a melhor coisa que poderia ter acontecido”, afirmou o ministro durante evento em Brasília, em uma tentativa de fazer do limão uma limonada, por ter propiciado o debate sobre soluções estruturais para as contas públicas.

As medidas “estruturais” incluiriam, segundo as especulações que circularam nos meios de comunicação, o adiamento do aumento da complementação pela União do Fundeb, o fundo da educação básica, limites aos supersalários de parte do funcionalismo público e a redução das isenções tributárias a empresas estimadas em 800 bilhões de reais por ano. A lista abrange ainda a elevação da arrecadação das receitas do petróleo em 35 bilhões de reais, a antecipação dos dividendos do BNDES e a tributação das apostas e dos investimentos em criptomoedas.

A rejeição à alta do imposto, afirmou um otimista Haddad, foi “a melhor coisa que poderia ter acontecido”

O anúncio do decreto do IOF foi seguido de uma grita generalizada e de acusações de que o governo só pensa em aumentar os tributos – como de costume, a reclamação partiu de quem está acostumado a não meter a mão no bolso. O estrago político estava, porém, feito. “O governo bateu cabeça. O viés arrecadatório do arcabouço fiscal e as tentativas frustradas de recuperação de receitas, muitas delas negadas pelo Congresso, levaram à tentativa de usar o imposto para dispensar a aprovação parlamentar, mas falharam na análise dos impactos”, afirma o economista José Augusto Gaspar Ruas, professor da Facamp. A comunicação foi horrível, prossegue, e os recuos indicaram a precariedade da estratégia. Uma parte da medida vai passar, mas o governo precisará de outras fontes, acrescenta Ruas, que não encontrou nenhum aspecto defensável do ponto de vista regulatório, função que o IOF poderia desempenhar. “Acho que aquele pedaço sobre o câmbio poderia, no longo prazo, conferir maior estabilidade. Mas seria melhor implementá-la em um contexto mais favorável, não agora, com tanta incerteza internacional.” A saída honrosa, acrescentou o professor da Facamp antes do anúncio do resultado da reunião com Lula, é pautar novamente temas que o Congresso tem rejeitado de modo sistemático, para “evidenciar” que o Parlamento é “o vilão do ajuste, devido às emendas parlamentares e à resistência em autorizar a redução de gastos tributários ou isenções e outras medidas que o governo propôs e não avançaram”.

Segundo o economista Pedro Garrido, consultor parlamentar da Câmara, talvez a Fazenda tenha escolhido o IOF para possibilitar o atendimento de vários objetivos de política pública positiva. Um deles, de caráter regulatório, seria desestimular a opção por transações apenas para proporcionar uma vantagem tributária. Há outra questão regulatória, prossegue o consultor, relacionada a determinadas operações fora do País, que consiste em um fechamento de conta de capitais, motivo de uma balbúrdia grande no mercado financeiro. Para o Brasil, seria importante, pois a conta de capitais é muito aberta. A liberalização criou mais desigualdade nos países que a adotaram, mostrou um amplo estudo divulgado pelo Departamento de Economia do Fundo Monetário Internacional.

Sabotagem. O Congresso tem derrubado a maioria das propostas de ajuste encaminhadas pelo governo. Sem ônus – Imagem: Jonas Pereira/Agência Senado

O terrorismo que o BC fez no ano passado, ainda sob a presidência de Roberto Campos Neto, ao repisar inúmeras vezes a tese do descontrole fiscal, deu razão para quem considerava o risco muito elevado. Essa insistência, cabe acrescentar, manifestada em várias declarações de Campos Neto, inclusive para investidores no exterior, agravou a percepção em relação ao controle das contas públicas e acentuou a distribuição sazonal de lucros, dividendos e royalties por filiais de multinacionais no fim do ano. “Uma festa danada, diria o ex-ministro da Fazenda Paulo Guedes, pois a autorização para as remessas de lucros e dividendos vale também para os investidores estrangeiros, que podem enviar recursos para o exterior sem pagar qualquer tributo”, atenta Garrido.

Essas remessas têm impacto sobre a taxa de câmbio, que é totalmente definida pelo mercado e apresenta uma das maiores flutuações do planeta. O fim da isenção de tributação de lucros e dividendos, cabe observar, é parte central do projeto do governo, em tramitação na Câmara, que visa isentar de IR os rendimentos de até 5 mil reais. A contrapartida fiscal seria a taxação de lucros e dividendos, eliminada durante o mandato de Fernando Henrique Cardoso e adotada apenas em outros dois países, as minúsculas Estônia e Letônia.

Nos moldes atuais, o arcabouço fiscal é inexequível

Criar condições para o cumprimento do arcabouço fiscal é parte essencial das negociações em curso, insiste Haddad. A proposta de medidas estruturais, a começar pela redução dos benefícios tributários e desonerações, seria um começo. “Esse arcabouço fiscal, nas condições atuais, tem um problema, é inexequível. Dentro de um ou dois anos, vai inviabilizar os gastos discricionários. Ninguém vai admitir gastos discricionários negativos, como está no Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias para os próximos dois exercícios. É sinal de que o arcabouço não vai ser cumprido”, avalia Garrido. “Então, esse é um nó. Vejo o ­pessoal da Fazenda catando moedinhas, corta isso aqui, pega aquilo ali, faz uma limpa no cadastro do Bolsa Família, porque aí é possível pegar umas fraudes, e economizaria xis bilhões”, prossegue o consultor. Guedes fez o mesmo, embora tenha atingido um número bem maior de beneficiários, ao menos 1 milhão. “Espero que o presidente Lula não faça a mesma coisa. Tem tino político e sensibilidade social para não fazer. Apesar de existirem medidas legislativas nesse sentido tanto para o Bolsa Família quanto para o BPC. Mas há uma camisa de força, portanto, o Ministério da Fazenda é obrigado a buscar esses tostões.”

Segundo a regra fiscal vigente, eventuais cortes nos gastos são direcionados ao superávit primário e não para programas que poderiam ter efeito, imediato e futuro, na redução da desigualdade e no crescimento sustentado, incluídas políticas sociais e o Nova Indústria Brasil, criado para reindustrializar a economia e gerar empregos de mais qualidade.

Alvos de sempre. Espera-se que o Palácio do Planalto resista às ideias bastante difundidas de espetar a conta nas costas dos idosos pobres – Imagem: Elza Fiúza/Agência Brasil

O economista considera a situação “realmente difícil”, pois foi o governo que criou as amarras para si próprio, pressionado pelo mercado e por setores que o apoiaram nas eleições, após uma vitória apertada sobre Jair Bolsonaro. Não havia, no entanto, segundo Garrido, nada que obrigasse a adoção do arcabouço fiscal nos moldes anunciados. Inúmeros outros procedimentos fiscais poderiam ser utilizados para conter os gastos, entre eles as regras de responsabilidade fiscal, de estimativa de gastos e de compensação. A praticamente um ano das eleições presidenciais, a pressão, no Congresso e fora dele, para enquadrar o presidente Lula e tentar limitar as chances de um quarto mandato do petista tornam o ambiente hostil a qualquer medida que permita um alívio nas contas e uma margem maior de investimentos públicos. A racionalidade não tem sido o forte do Parlamento, a serviço dos interesses pessoais de deputados e senadores e do lobby dos empresários e do mercado financeiro, e tende a desaparecer por completo no clima já instalado de campanha.

O plano B a ser apresentado por ­Haddad na próxima semana lembra as dificuldades enfrentadas pela equipe econômica no ano passado, quando o Congresso impediu o governo de fechar a brecha das isenções fiscais para o setor de eventos. No fim, o Executivo viu-se forçado a ceder e aceitou um período de transição que reduziu em muito o impacto da medida. A resistência repetiu-se no caso da Medida Provisória que restringe a compensação de créditos tributários de PIS/Cofins, para contrabalançar o buraco na arrecadação de impostos provocado pela desoneração da folha de pagamentos de 17 setores econômicos, concedida em 2011 e prorrogada várias vezes até 2023. Neste ano, está prevista a reoneração gradual, para aumentar a arrecadação de impostos. Outro efeito de médio prazo.

O esforço fiscal do governo, negado pela Faria Lima, foi, no entanto, reconhecido pelo Fundo Monetário Internacional na terça-feira 3, no relatório apresentado após a visita de representantes da instituição ao Brasil neste ano. “Os esforços das autoridades para continuar a melhorar a posição fiscal, enquanto procuram atender às necessidades de gasto social e de investimento, são bem-vindos e medidas adicionais são justificadas”, descreveu o FMI em comunicado à imprensa. O corpo técnico “recomenda um esforço fiscal sustentado e mais ambicioso, apoiado por um arcabouço fiscal reforçado, mobilização de receitas e medidas do lado da despesa”. Não faltará quem acuse o fundo de “irresponsabilidade”. •

Publicado na edição n° 1365 de CartaCapital, em 11 de junho de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Limões e limonada’

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Last Update: 05/06/2025