No último dia 17 de março, o Le Monde Diplomatique Brasil publicou uma coluna chamada ‘O Guarani’ de Ailton Krenak, movimento e as limitações culturais de seus críticos, assinada por Maurício Brugnaro Júnior. Nela, o autor tenta debater com alguns críticos da montagem da ópera de Carlos Gomes feita no Theatro Municipal de São Paulo por Ailton Krenak.

A montagem, apresentada pela primeira vez em 2023, voltou aos palcos do Municipal este ano e recebeu mais críticas públicas agora do que em sua primeira temporada.

O colunista do Le Monde faz uma defesa de Ailton Krenak e sua “adaptação” da obra-prima de Carlos Gomes, inspirada em outra obra-prima que é o romance de José de Alencar.

“Por mais que tenha ocorrido a tentativa de construção de um herói nacional durante o romantismo — mais especificamente no período literário indianista — na figura de Peri, não é possível dissociá-lo de uma caricatura que ainda segue os ideais elitizados e ocidentalizados positivistas de ‘progresso’ há muito arcaicos. Além disso, somam-se implicações de poder em diversos elementos, seja no sincretismo religioso e cultural, culminando na simbólica cena do casal formado por um indígena e uma portuguesa como fundadores da nação brasileira.”

Eis aqui como o autor do texto entende o movimento artístico do Romantismo brasileiro. Para ele, os escritores e artistas tinham um “ideal elitizado e ocidentalizado” do índio. A primeira coisa que se deveria dizer logo de cara é que na arte as coisas são “idealizadas”. A crítica, portanto, é tão vazia quanto dizer que a história contada não era verdadeira.

Mesmo assim, vejamos o que ele diz sobre esses “ideais elitizados”. Para eles, o que faziam os românticos era uma caricatura que na verdade transferia para o índio valores “ocidentalizados”. A colocação é de quem não sabe o que foi o período do romantismo e os debates que tomaram conta da época. Os principais autores românticos – e José de Alencar está entre os maiores – estudavam exaustivamente os relatos da vida dos primeiros habitantes do Brasil. Amplos debates foram feitos sobre o tema, assim como foram feitos debates sobre como seria a forma mais fiel de representar o índio.

Isso é literatura, mas a pesquisa feita pelos românticos sobre a vida dos índios deveria ser valorizada como uma obra de antropologia. Não se trata, portanto, de uma simples idealização e de uma caricatura. Os românticos estavam seriamente buscando uma literatura nacional e consequentemente uma identidade nacional e o indígena, para eles, era um elemento essencial dessa busca. Inclusive, o índio era a defesa do brasileiro contra o Europeu. A figura do índio ajudou a fundar a própria nacionalidade.

Poderia haver algo mais importante do que isso para os povos indígenas?

No entanto, os identitários atuais, que acham que sabem alguma coisa sobre os índios, querem dizer que os românticos são uma espécie de “vilões” por terem retratado os povos indígenas.

Sobre uma crítica feita pelo maestro Júlio Medaglia e o romancista José Roberto Walker, o autor afirma o seguinte:

“Entre as diferenças ganham relevância os aimorés, que no original são tratados como vilões, enquanto na atualidade assumem o lugar da própria floresta, pois, justamente, a relação e a cosmologia de várias comunidades indígenas se constitui segundo outra lógica, outra epistemologia que não a mercadorização ocidental. Outro ponto questionado é o uso de determinados instrumentos musicais, como o batuque acompanhado de um violão e da rabeca, seguido da frase ‘os verdadeiros indígenas nunca ouviram esses sons’. Pois bem, há muito é conhecido pelos estudos antropológicos que os indígenas, principalmente os guaranis possuem a característica de utilizar instrumentos musicais de cordas, como o mbaraka (violão) e a guyrapa-pe (rabeca), acompanhadas do ãgua-pu (tambor), takua-pu (bastão de ritmo) e do mbaraka-mirin (chocalho). Assim, associando sua história e sua própria reinterpretação de acontecimentos e fenômenos segundo lógicas locais, carregando de simbolismos. Logo nos questionamos: qual a visão sobre os indígenas tem os autores da crítica? Ao que tudo indica a que buscam conservar, a mesma descrita por homens em determinadas posições de poder e status sociais durante o século XIX e XX.”

A crítica de Medaglia e Walker está corretíssima, mas o autor acha que não. O que os dois afirmaram é que a tentativa de reproduzir uma música Guarani no meio da peça, além de ser de mau gosto, pois distorce e vandaliza a obra de Carlos Gomes, é uma demostração de ignorância de Krenak porque os indígenas só usaram instrumentos de cordas com a chegada dos europeus, ou seja, não há nada puro ali como querem os identitários. Justamente porque não existe essa pureza. O autor da coluna diz, no entanto, que alguns “estudos antropológicos” teriam mostrado que os Guarani usam instrumentos de corda. Mas desde quando? Essa é a pergunta a ser feita.

Sobre a “intepretação” de Krenak, muito bem criticada por Medaglia e Walker, o autor da coluna afirma:

“Dessa forma, a própria construção de uma memória coletiva nacional envolve a criação, reprodução e transformação constantes ao longo da história, sendo uma manifestação no cotidiano. Também a cultura, sempre passível de interpretação, é interesse de grupos e seus representantes, estes que decidem sobre o sentido da reelaboração simbólica de determinada prática cultural. Logo, Ailton Krenak tomou uma decisão de reinterpretação de um clássico — por que não?! —, aqui endossado; e seus críticos tomaram a decisão de manter o status quo dos estratos sociais desiguais.”

Isso é uma distorção da crítica. O problema não é Krenak interpretar a obra. Ele pode pensar o que quiser sobre Carlos Gomes, José de Alencar ou seja lá quem for. A crítica é justamente ao fato de que Krenak pegou a su interpretação pessoal, que aliás é hostil à obra, e usou-a para deformar e vandalizar a uma obra que já existe, isso sob a tutela e o aplauso oficial da administração do Municipal. Se Krenak quer mudar O Guarani, que escreva uma ópera, não danifique a que já existe. Essa é a crítica.

E aí justamente caímos no argumento do identitarismo que é um contrassenso: acusar os críticos de serem da “elite” e Krenak de ser um “subversivo”:

“A subversão proposta por Krenak revelou tanto a potência de sua cosmologia em instituições tipicamente ocidentais, como também o preconceito das elites acadêmicas, financeiras e culturais brasileiras. Como demonstrou Lucien Goldmann: toda realização humana se apresenta como um esforço para equilibração provisória entre o sujeito e o mundo ambiente, transformando ambos e sendo continuado por outro processo subsequente. Sempre é bom destacar que os sujeitos podem criar e receber influências e expressões artísticas, transformando repertórios, visando mobilidade e integração social, acompanhando e fazendo com que aconteça a movimentação cultural, pois se está em movimento é porque está vivo.”

Não há nada de subversão no que fez Krenak. Na verdade, sua ação é conservadora e reacionária. Está a serviço de uma ideologia igualmente reacionária cuja essência é ideia de que tudo o que o Brasil produziu de bom é, na verdade, ruim. Mais ainda, é reacionária porque vandaliza uma obra de arte que deveria ser amplamente conhecida pelo povo, pois faz parte de nossa formação. Krenak faz tudo isso, como dissemos, com o apoio e o aval da “elite”, da verdadeira elite que promove essa ideologia, que controla o Theatro Municipal.

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Last Update: 23/03/2025