Lídia Meirelles, Presente!

por Nayana Camurça e Túlio Muniz

Lídia Maria Meirelles nasceu em Uberlândia-MG, há 66 anos.

Formada em Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), também tinha mestrado em Museologia, Educação e doutorado em História pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), instituição a qual dedicou grande parte de sua vida, e na qual foi Diretora de Cultura, idealizadora e Coordenadora do Sistema de Museus da UFU e, principalmente, onde esteve na direção do Museu dos Povos Indígenas por cerca de até o ano passado.

 Era membro do Conselho Internacional de Museus (ICOM/UNESCO) e da Associação Brasileira de Museologia, do Conselho Gestor do Sistema Estadual de Museus de Minas Gerais (2013/2020), Consultora da Organização dos Estados Ibero Americanos (OEI) 2021/2022; e foi  Secretária Municipal de Cultura de Uberlândia (2001/2003). Nos últimos anos, colaborava com o Museo de America, de Madri, Espanha. No campo da Etnologia, Museologia e Museus, teve diversos artigos, capítulos e livros publicados nestas áreas.

Para além deste currículo técnico, Lídia era Antropóloga apaixonada e engajada, desde seus contatos iniciais com o povo Maxacali do Norte de Minas Gerais, quando de sua gradução (em 1981).

Lídia seguia a máxima de Darcy Ribeiro, de quem foi aluna na UFRJ: ninguém volta da mesma maneira a partir de um contato com o cotidiano da aldeia de um povo originário.  Ela ampliou esse campo afetivo e, embora tivesse atuação interdisciplinar, jamais deixou de lutar, defender e fortalecer a luta dos povos originários do Brasil, e do mundo.

E o fazia com um traço pessoal característico seu, um tom de voz suave como um beija flor, mas, quando necessário, potente como um gavião.

Voz essa que nos fará falta, bem como o seu compartilhamento das críticas que, de certo, elaborava a essa época obscura, quando a sanha fascista avança contra os Museus Públicos, como vimos cá, no Brasil em período nefasto recente, nos desgovernos Temer e Bolsonaro, em cuja transição, de um período anti-democrático para outro ainda mais obscuro, foi emblemático o incêndio do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, em 2018.

Talvez um prenúncio dos anos que se sucederam, de ataque ao Pensamento, ao Patrimônio Cultura e à Memória nacionais, e no estrangeiro, com o atual ataque do governo norte-americano às suas próprias universidades e instituições museológicas.

 Lídia partiu, imprevista e tristemente, no último 5 de Agosto. E foi na época do ano da qual talvez mais gostava, no enlace do Inverno para Primavera, quando se inicia a florada das jabuticabeiras que ela cultivava em seu quintal, carinhosa e saborosamente. Não teve tempo de ver as flores deste ano darem lugar aos frutos, mas nos deixou com um aroma de lavanda no ar, sua fragrância preferida.

Lídia adoraria estar aqui, planejava há meses a estadia em Fortaleza para além deste encontro, pois era cidade que não conhecia e na qual tinha amigas e amigos queridos a planejar um roteiro afetivo alternativo.  

Lídia foi homenageada, in memorian, no 8º. Forum Permanente de Museus Universitários, movimento do qual era ativista, e que ocorre em Fortaleza de 25 a 29 de Agosto (ver https://fpmu.com.br/).

Abaixo, texto de seus familiares, também destacando a importância de Lídia para Cultura brasileira.

Portanto, saudemos:

Lídia Meirelles, presente.

*Nayana Camurça, profa. de Artes Visuais no Instituto Federal do Ceará (IFCE), e Túlio Muniz, prof. na Universidade Federal do Semi Árido (UFERSA). Eram amigos e parceiros de trabalho de Lídia Meirelles em diversos momentos no MUPI-UFU.

Texto dos familiares de Lídia Maria Meirelles (Clever Zárate, esposo, e Rômulo Meirelles e Julia Caparelli, filhos). Texto lido no momento de homenagem a Lídia Meirelles no 8º. Forum Permanente de Museus Universitários

Lídia Maria Meirelles, mineira, completaria 67 anos nesta quarta-feira, 27 de agosto. Em bom mineirês, se perguntaria: “É filha de quem?”. Filha da uberlandense Maria e do friburguense Othomar. Talvez seus primeiros contatos com museus tenham acontecido durante visitas a parentes em Petrópolis.

Na juventude, chamava-lhe muito a atenção aquele povo que passava pela cidade junto com os migrantes europeus. Os primeiros, povos originários, caminhavam sem rumo e não eram acolhidos como os segundos. Lídia começou a admirar aquele povo que, apesar de rejeitado, mantinha-se firme e altivo, no melhor sentido das palavras.

No final da década de 1980, o Museu do Índio nasceu na Universidade Federal de Uberlândia, a partir da doação de peças de diversos grupos originários por uma pessoa da comunidade local. Desde então, muitas foram as lutas de Lídia pelo reconhecimento do museu. Ouvia-se, dentro e fora da universidade, comentários como: “Aqui não tem índio” ou “Museu é depósito de coisas velhas e sem uso”. Na prática, Lídia já exercia o papel de coordenadora. Em 1991, o museu, que inicialmente integrava um núcleo dentro de um instituto, foi transferido para um espaço dentro da universidade. O local, entretanto, era muito pequeno para o acervo, que crescia com novas doações. Nesse mesmo ano, realizou pesquisa de campo junto ao povo Apyãwa/Tapirapé, no Mato Grosso, com o objetivo de corroborar informações do acervo existente. Em 1995, fez nova pesquisa de campo, desta vez com o povo Maxakali, em Minas Gerais.

Em 1992, com a posse do primeiro reitor eleito pela comunidade universitária, Lídia assumiu a Coordenação de Cultura da UFU. Até o final de 1995, os campi fervilhavam de projetos e eventos culturais. Nessa etapa, ela não deixou de coordenar o museu e participou da criação do embrião da FPMU, em Goiânia. Com seu incentivo, foram criados vários museus dentro da universidade. No final da gestão, o Museu do Índio foi transferido para um espaço alugado fora da universidade, adequado ao seu funcionamento como museu.

No início da gestão seguinte, em 1996, a nova administração universitária extinguiu os projetos e eventos culturais nos campi. Considerando que “qualquer local” poderia abrigar o museu, a administração propôs alternativas inviáveis, mas Lídia se manteve firme contra elas. Naquele ano, o museu permaneceu fechado em seu espaço recém-alugado. No ano seguinte, foi transferido novamente para um local mais amplo, fora da universidade, onde voltou a abrir as portas à comunidade.

Em 1997, Lídia recebeu uma bolsa integral do governo espanhol para cursar Museologia e Museografia Americana, em Sevilha. Aproveitou a oportunidade para visitar o Museo de América, em Madri, e percebeu que muitas peças brasileiras estavam expostas com descrições equivocadas. Ao retornar ao Brasil, entrou em contato com os dirigentes do museu espanhol. Eles enviaram, fotografias do acervo com informações incorretas e concordaram em ser assessorados. Muitas peças, inclusive, eram de povos originários de países amazônicos vizinhos ao Brasil. Após longas conversas e insistência, Lídia conseguiu financiamento integral do Ministério da Cultura do Brasil para revisar a catalogação das coleções etnográficas brasileiras do Museo de América, trabalho realizado em Madri entre março e abril de 1999.

Em 2001, foi convidada a assumir a Secretaria Municipal de Cultura de Uberlândia, o que a afastou da coordenação do Museu do Índio. Sua atuação foi marcada pelo mesmo ímpeto que imprimira na universidade. Lutou pela preservação do patrimônio histórico da cidade e pela reativação de diversos equipamentos culturais. Criou a Lei Municipal de Incentivo à Cultura e, apesar de enfrentar ameaças, levou adiante diversos projetos. Deixou o cargo no final de 2003, por decisão política.

Ao sair da Prefeitura, foi surpreendida pela impossibilidade de reassumir a coordenação do Museu do Índio. O instituto responsável não sabia ao certo o destino do museu. Após várias indefinições, em 2007 a universidade decidiu vinculá-lo a um órgão superior. Na época, Lídia foi chamada para assessorar a Diretoria de Comunicação Social da UFU.

Em 2008, ao retornar à coordenação do museu, confirmou as más notícias que já havia recebido. Antes de sua volta, a administração central da UFU nomeou uma comissão que constataria a situação precária do acervo. Entre 2000 e 2007, a coordenação foi desastrosa: peças emprestadas sem controle, perdas por descuido, catalogação comprometida, biblioteca desfalcada e omissão de instâncias da universidade diante da negligência.

A recuperação do museu exigiu um trabalho hercúleo. A primeira preocupação de Lídia foi com o acervo. Realizou a conferência das peças, separando as irrecuperáveis, e providenciou a dedetização completa, feita por um especialista de São Paulo. Muito mobiliário foi perdido por uso inadequado. A conferência da biblioteca revelou livros danificados e outros retirados sem registro.

Em 2009, o museu mudou novamente de sede. A prioridade de Lídia continuou sendo o acervo, seguido da aplicação do Regulamento do Museu do Índio, que havia sido desrespeitado pela coordenação anterior. A partir daí, promoveu a interlocução com a comunidade interna e externa à UFU, organizando cursos, encontros, seminários, oficinas e palestras com grupos originários, indigenistas, linguistas, educadores e outros profissionais. Muitos registros dessas atividades estão disponíveis na internet. Frequentemente, Lídia com argumentos que só ela era capaz de transmitir, conseguia apoio voluntário de padarias, restaurantes e hotéis para viabilizar eventos sem custos para a universidade. No campo educacional, buscou parcerias com a Secretaria Municipal, propondo novas formas de trabalhar a temática indígena em sala de aula.

Em 2012, coordenou o Grupo de Trabalho para elaboração do Projeto de Criação do Centro Cultural da UFU, que abrigaria até três museus universitários. Apesar da ampla escuta à comunidade acadêmica e externa, a mudança na gestão universitária impediu sua concretização.

Entre 2002 e 2012, também foi coordenadora de Extensão e Pesquisa e docente da Faculdade Católica de Uberlândia, lecionando disciplinas na graduação e pós-graduação, sempre voltadas para a antropologia e a preservação do patrimônio cultural. Nesse período, realizou visitas técnicas com seus alunos a Goiás Velho, à aldeia Tapuio (Carretão), a Paraty — onde muitos estudantes viram o mar pela primeira vez — e a Ouro Preto, chamada por eles de “cidade-museu”. Nessa ocasião, Ângelo Oswaldo, então prefeito, abriu espaço em sua agenda para palestrar aos estudantes, por conhecer Lídia dos tempos em que ela fora secretária de Cultura. Sua preocupação constante era transmitir o respeito ao Patrimonio Histórico na sala de aula.

Em 2017, Lídia decidiu se aposentar, motivada pelo receio das mudanças políticas da época e pela possibilidade de perda de direitos. No entanto, sua aposentadoria não significou afastamento: continuou atuando voluntariamente como coordenadora do Museu do Índio até 2024. Esse período trouxe desafios, sobretudo diante da burocracia universitária, que pouco reconhece o trabalho de quem não possui vínculo formal. Ainda assim, Lídia manteve firme o compromisso com o museu, organizando inúmeras exposições e recebendo dois prêmios de reconhecimento institucional.

Desde 2023, o museu passou a se chamar Museu dos Povos Indígenas (MuPI).
A participação de Lídia nunca cessou. Ao contrário: permaneceu intensa, marcada pela dedicação e pelas lutas constantes para assegurar a vitalidade do Museu Universitário.

Nos meses finais de 2024, aconteceu nova mudança do museu. Com carinho, ela preparou a mudança do acervo. Procuro que cada uma das peças, independentemente de sua importância, seja preparada para um transporte seguro. O novo local pertence à universidade, foi prometido um ambiente próprio para ser museu. Só quem convivia diuturnamente com Lídia sabe que a luta não tinha acabado.

Era hora de viajar pelo Brasil e conhecer suas belezas, uns dias antes de sua partida passou pelo sul de Minas e já preparava as seguintes viagens. NÃO ESTA!

De seu esposo Clever Zárate, de seus filhos Rômulo Meirelles e Julia Caparelli, a saudade eterna!

Eu não te peço que me traga uma estrela azul, só te peço que o meu espaço preenchas com a tua luz.
Da música Yo no te pido, de Pablo Milanés.

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Last Update: 27/08/2025