Guardadas as diferenças, as trajetórias de Pepe Mujica e do papa Francisco possuem várias linhas paralelas. Ambos vieram do fim do mundo e projetaram suas lideranças não porque comandaram grandes exércitos, venceram guerras, foram conquistadores ou construíram obras monumentais. Nada disso. Eles lideraram pelo exemplo.
Francisco e Mujica vieram de famílias pobres: o pai do papa argentino era ferroviário e a mãe, dona de casa. Os pais do ex-presidente uruguaio eram camponeses. Ele mesmo trabalhou na lavoura e, quando presidente, viveu em seu pequeno sítio, com suas galinhas e o Fusquinha azul.
Ambos abraçaram a causa do meio ambiente. Viam a crise climática como o grande drama do século XXI. Francisco criticava o desperdício. Mujica tornou-se um pregador anticonsumo. Foram líderes de uma mesma época, lutaram por causas comuns, viveram 89 anos e partiram no mesmo ano, com poucos dias de diferença. Um ateu, outro temente a Deus.
Mujica teve uma vida complexa. Foi integrante do movimento guerrilheiro Tupamaros, que roubava bancos e empresas e, depois, distribuía os frutos dos assaltos à população pobre. Foi preso várias vezes. Em 1971, participou de uma fuga espetacular do cárcere de Punta Carretas, juntamente com 110 prisioneiros. Em 1972, foi recapturado e ficou preso durante quase 13 anos, 8 deles na solitária, na condição de refém da ditadura.
Com a redemocratização, ocupou vários cargos políticos. Elegeu-se deputado e senador. No fim do século XX, os tupamaros ingressaram na Frente Ampla, uma intrincada frente de organizações de esquerda e de movimentos sociais que conseguiu eleger Tabaré Vásquez em 2005. Mujica foi seu ministro da Agricultura. Ao longo dos anos, foi agregando admiração e popularidade pelo seu estilo de vida despojado. Andava por Montevidéu numa motoneta Vespa ou no seu Fusca azul. Certa vez, o antropólogo Daniel Vidart o descreveu, na época, como um “Don Quixote vestido de Sancho”.
Eleito presidente em 2010, não mudou o estilo de vida. Preferiu continuar morando no seu sítio, em vez do luxuoso palácio presidencial. Seu governo foi regular, sem grandes feitos. A economia continuou crescendo, e ele deu prioridade à educação e aos programas sociais. Mas foi nesse mesmo governo que Mujica tornou-se um fenômeno de liderança que transcendeu o Uruguai e se espalhou pelo mundo.
Por quê? Provavelmente, por duas coisas: seu estilo de vida e suas palavras. Durante o governo, transitou num arco que integrava sinceridade e moderação. Diferentemente da maior parte das esquerdas, via os seres humanos numa perspectiva diferente: são complexos, ambivalentes, contraditórios. Querer enquadrá-los numa forma política nascida da imaginação implicaria em ferir dimensões da liberdade.
Para ele, os humanos têm uma face conservadora e outra renovadora. Vivem essa contradição, isto faz parte de sua natureza. O conservador radicalizado torna-se reacionário, enquanto o progressista radical soa infantil. Foi áspero crítico dos governos de Nicolás Maduro na Venezuela e Daniel Ortega na Nicarágua. Não relutou em classificá-los de ditaduras.
Saindo da Presidência, viajou pelo mundo e foi recebido em todos os lugares como uma celebridade. As pessoas o admiravam pela sua simplicidade, austeridade, humildade e renúncia. Não só pregou, mas viveu esses valores republicanos de forma autêntica.
No Uruguai, alguns analistas classificam Mujica como um misto de caudilho civil e pregador. Muitos livros foram escritos sobre ele. O certo é dizer que ele liderou pelo exemplo. Os líderes de hoje falam mais de números, finanças, indústrias, comércio, dinheiro, obras. São discursos desprovidos de valores. Mujica falava mais da alma humana. Entendia que a vida é um milagre, que deve estar acima do lucro.
Para Mujica, o líder precisa estar sempre ensinando e aprendendo. Ensina mais pelo exemplo e menos pela imposição. Em 2019, ele voltou a ser eleito senador. Assumiu o cargo em fevereiro de 2020 e renunciou em outubro, no auge da pandemia de Covid–19. No discurso de despedida, afirmou: “O ódio é fogo como o amor, mas o amor é criativo e o ódio nos destrói. Tenho uma boa quantidade de defeitos, sou apaixonado, mas no meu jardim não cultivo ódio há décadas, porque aprendi uma dura lição que a vida me impôs: o ódio acaba emburrecendo”.
Milhões de pessoas pelo mundo se interessaram por Mujica não por ele ser um estadista, que nunca foi. Num mundo perdido e extraviado, cheio de violências e guerras, de ausência de sentidos, que parece mais caminhar para o apocalipse do que para a redenção, Mujica inspira pela autenticidade da vida que teve. •
Publicado na edição n° 1362 de CartaCapital, em 21 de maio de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Líder pelo exemplo’