Nas últimas décadas, o licenciamento ambiental se consolidou como o principal instrumento de controle e prevenção de danos socioambientais no Brasil. Trata-se de um processo técnico e jurídico que analisa, condiciona e restringe empreendimentos com potencial de causar impactos significativos à natureza e às comunidades. Ele é, portanto, a principal ferramenta de prevenção de danos ambientais e uma garantia de que o “desenvolvimento econômico” ocorra com responsabilidade, transparência e justiça social – e não acima de tudo e de todos.

É justamente por isso que o Projeto de Lei 2.159/2021, aprovado recentemente no Senado, representa um ataque frontal à política ambiental brasileira construída com muito suor ao longo de anos.  Disfarçado de proposta de “modernização” e “desburocratização”, o texto esvazia e desmonta o licenciamento ao transformá-lo em um procedimento autodeclaratório, sem estudo de impacto ambiental, sem escuta das comunidades afetadas e sem avaliação dos efeitos indiretos ou cumulativos de grandes obras.

Na prática, isso significa que empreendimentos potencialmente impactantes poderão ser aprovados sem Estudo de Impacto Ambiental (EIA), sem consulta às populações afetadas e sem qualquer avaliação dos impactos indiretos, cumulativos ou sinérgicos – como desmatamento secundário, grilagem de terras, especulação imobiliária, contaminação de recursos hídricos, deslocamento de comunidades vulneráveis e destruição de modos de vida tradicionais. A chamada Licença por Adesão e Compromisso (LAC) – modelo proposto pelo PL – permite que o próprio empreendedor declare, por conta própria, que está cumprindo exigências ambientais mínimas, sem que órgãos técnicos analisem previamente o projeto. É como autorizar alguém a construir uma barragem ou explorar uma mina com base apenas em sua palavra. Em um país onde tragédias como Mariana e Brumadinho já mostraram o custo humano e ambiental da negligência, essa proposta é não apenas irresponsável, mas criminosa.

O texto também exclui do licenciamento atividades do agronegócio, de qualquer licenciamento ambiental, exigindo apenas a apresentação do CAR (Cadastro Ambiental Rural) e do PRA (Programa de Regularização Ambiental). Isso significa que práticas que mais consomem água, degradam o solo, utilizam intensivamente agrotóxicos e impulsionam o desmatamento serão liberadas de qualquer controle prévio. Pior: o projeto retira o poder de órgãos como o ICMBio e a FUNAI de opinar sobre empreendimentos em áreas protegidas ou em terras indígenas ainda não homologadas – justamente aquelas mais vulneráveis à expansão da fronteira agrícola e ao avanço do garimpo ilegal.

Além disso, enfraquece o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) e restringe a atuação da FUNAI e do ICMBio. A FUNAI só poderá se manifestar sobre empreendimentos que afetem terras indígenas já homologadas, excluindo aquelas em processo de reconhecimento. O ICMBio perderá o poder de veto em áreas de conservação, salvo em casos específicos. Isso significa desproteção total para territórios em disputa e risco elevado para ecossistemas inteiros.

Outro ponto crítico é que o PL ignora completamente a crise climática. A palavra “clima” sequer aparece no texto. Isso é alarmante em um país onde o desmatamento – impulsionado por empreendimentos mal regulados – responde por cerca de 46% das emissões de gases de efeito estufa. Sem controle ambiental eficaz, aumentam as emissões, agrava-se a mudança climática e comprometem-se os compromissos internacionais do Brasil, como o Acordo de Paris.

O projeto também abre caminho para uma “guerra fiscal ambiental” entre os estados. Com o fim da coordenação nacional, cada estado poderá definir suas próprias regras sobre licenciamento, gerando uma competição predatória baseada em quem exige menos. Isso compromete a padronização das políticas ambientais e pode levar à completa desregulação, estimulando uma corrida por quem oferece menos exigências para atrair investimentos. Teremos em breve um mercado de licenças frágeis e permissivas.

É importante destacar que o licenciamento ambiental foi criado como uma resposta ao descontrole ambiental observado até a década de 1980. No caso do desastres como o de Mariana, o Ministério Público identificou falhas e omissões no processo de licenciamento das operações da Samarco, que não levaram em conta os riscos potenciais de rompimento e os impactos ambientais, resultando em mortes, deslocamentos e contaminação dos rios até hoje. Agora, imagine o que poderá acontecer na ausência de qualquer regulação. Além disso, é com esse mecanismo que as comunidades afetadas conquistaram direitos à informação, à consulta e à reparação.

A aprovação do PL 2.159/2021 não é um detalhe técnico. É um divisor de águas. Se esse texto for sancionado, estaremos diante do maior retrocesso ambiental desde a criação da Política Nacional do Meio Ambiente, em 1981. E os impactos não serão abstratos: serão sentidos na intensificação da crise climática a imediato, médio e longo prazo – e, no fim, no custo social, ambiental e econômico que todos pagaremos.

Mais uma vez o momento exige pressão, mobilização nas ruas e redes sociais com o engajamento de todes que compreendem que o futuro do Brasil não pode ser vendido em nome de um falso progresso. O licenciamento ambiental não é um obstáculo ao desenvolvimento – é o que nos permite escolher que desenvolvimento queremos.

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Last Update: 02/06/2025