Como nós, enquanto sociedade, devemos interagir uns com os outros, debater, tomar decisões? O que move os políticos a focar e agir sobre uma coisa e não outra? Os atenienses tinham a Ágora, onde cidadãos (homens, donos de escravos) se reuniam para discutir e tomar decisões sobre as questões do dia. No início do século XX, John Reith imaginou a emissora BBC, de forma muito aristocrática, como um espaço onde a nação poderia reunir-se para aprimorar os valores (supostamente) britânicos de democracia, razoabilidade e discussão.

E agora temos Elon Musk, um bilionário sul-africano-canadense-americano que trata nossa arena política como um videogame com o qual ele pode brincar à vontade enquanto descansa no clube de campo de Donald Trump na Flórida. Recentemente, ele mexeu no joystick de sua plataforma de mídia social, a X. Primeiro, chamou a ministra britânica de proteção às mulheres, Jess Phillips, de “apologista do genocídio do estupro”, e acusou o primeiro-ministro Keir Starmer de ser “cúmplice do estupro da Grã-Bretanha”. Tais calúnias, amplificadas para 211 milhões de seguidores, poderiam ter sido simplesmente desprezadas como ruído. Mas elas modificaram o comportamento. O governo pôs as políticas em ação. Os conservadores exigiram um inquérito nacional sobre bandos de aliciamento, apesar de não terem agido quando estiveram no poder.

Não é a única intervenção transatlântica de Musk. No verão passado, ele interveio durante os tumultos raciais na Inglaterra, perguntando por que Starmer não protegia todas as raças, enquanto sua plataforma se tornava uma fábrica de mentiras com agitadores de extrema-direita alegando incorretamente que um refugiado havia matado garotas locais.

Vale a pena relembrar o que queremos dizer com a ideia maleável e imprecisa de uma “esfera pública” democrática. O filósofo alemão Jürgen Habermas romantizou a Grã-Bretanha do século XVIII como um dos berços modernos da esfera pública. Quando a corte real recuou como o lugar onde se tomavam as decisões, argumentou, surgiu uma nova burguesia que debatia política e mercados de seguros em cafés, formava grupos cívicos, lia panfletos e influenciava novos partidos políticos. Essa era uma ideia elitista do público, mais uma fatia da sociedade do que uma esfera completa. À medida que surgiram os jornais, ela foi ainda mais distorcida pelos barões da imprensa, que moldavam a agenda do dia para atender às suas necessidades.

O bilionário sul-africano trata a arena política como um videogame

A visão de Reith sobre a BBC pretendia equilibrar isso com, como ele escreveu em suas memórias, “o líder falando diretamente ao ouvido do camponês… os fatos dos grandes temas, até então distorcidos pela interpretação partidária, agora colocados direta e claramente diante deles – um retorno à antiga cidade-Estado”. O que surgiu foi uma ecologia de jornais partidários, nem sempre precisos, cada um destinado a articular uma identidade social diferente, cujos jornalistas reuniam-se em programas de rádio e televisão “justos” e “equilibrados” como avatares de diferentes opiniões e interesses.

Quando a internet surgiu, parecia que os indivíduos poderiam representar-se mais diretamente. Os primeiros eram como panfletos do século XVIII, mas agora qualquer um podia escrever e você envolvia-se com os outros diretamente. E era global também – a promessa de uma Ágora digital mundial parecia possível. Então, as redes sociais mudaram tudo. Alguns homens tomaram o controle daquela palavra que induz levemente ao vômito, o feed. De repente, você não está se envolvendo com as ideias dos outros diretamente. Em vez disso, algum algoritmo atrás de uma cortina ditava, por razões que você nunca saberia, o que você via, quando e em que quantidade. Seus próprios gostos, medos, desejos eram constantemente analisados e manipulados sem que você soubesse. Você estava sendo pessoalmente sugado para uma multidão online, sem entender por que estava vendo uma coisa e não outra, se estava sendo empurrado por alguém real ou por uma “fazenda de trolls”.

Os senhores do algoritmo ditam não apenas as manchetes, mas seu senso de tempo e lugar, o destino de seus desejos. Para Mark Zuckerberg, o modo como vemos o mundo parece ser, geralmente, movido pelo lucro no curto prazo. Com Musk, como escreve meu colega da Universidade Johns Hopkins, Henry Farrell, parece ter mais a ver com suas peculiaridades pessoais. Às vezes, como um observador espirituoso me disse, Musk parece um descendente bizarro de Cecil Rhodes, reconstruindo um império de direita falante de inglês nas redes sociais. Nascido na África do Sul, de ascendência canadense-inglesa, nunca poderá ser presidente dos Estados Unidos, mas pode tentar controlar os domínios digitais. Seja qual for o motivo de Musk, os usuários do X estão se tornando dramatis personae nas obsessões dele.

A “esfera pública” sempre foi uma ideia confusa e semimítica, mas mesmo como aspiração agora pode parecer distante. Para onde quer que estejamos indo, olhe para a América, onde as palhaçadas de Musk são apenas uma política cotidiana do Maga, onde é comum atiçar multidões alimentadas por conspirações online. Autoridades eleitorais que não concordaram que a eleição de 2020 foi fraudada em prejuízo dos republicanos foram perseguidas horrivelmente. A mídia impressa nacional e local, que deveria ser o pilar de valores mais “reithianos”, está em grande parte falida.

Enquanto o X impõe aos concorrentes a lei da selva, Bezos, da Amazon, doa 40 milhões de dólares aos produtores de um documentário sobre a vida de Melania Trump – Imagem: Arquivo/AFP e Mike Tsukamoto/Força Aérea/Força Aérea/EUA

Parecia que bilionários como Jeff Bezos salvariam alguns jornais famosos. Mas magnatas têm interesses comerciais que dependem do governo. A preocupação é que sacrifiquem a independência editorial para garantir que o governo os trate bem. É um truque que Recep Erdogan, na Turquia, e Viktor Orbán, na Hungria, aprenderam há muito tempo: você não precisa assumir o controle da mídia, basta estimular seus donos a jogar a favor. Essa abordagem não parece impossível nos Estados Unidos depois de The Washington Post retirar charges que criticavam o novo governo e seus donos.

Enquanto isso, a realidade tornou-se tão fragmentada que não está mais totalmente claro se os processos democráticos, construídos para uma era da informação diferente, ainda podem fornecer um governo eficaz. As ditaduras estão adorando. Centralize todos os dados, desista de toda a sua privacidade e, então, deixe o líder usar a tecnologia para decidir como projetar a cidade ideal e escolher a melhor política.

Caso sirva de consolo, também houve pânico semelhante no início do século XX. Naquela época, o grande colunista norte-americano Walter Lippmann decidiu que a sociedade moderna era muito complexa, a mídia muito distorcida, o público muito facilmente manipulado para se confiar na democracia. Uma pequena elite tecnocrática deveria controlar as coisas. Em vez disso, uma mistura de leis de proteção à liberdade de expressão, o surgimento de um conceito de “objetividade” na mídia estadunidense e o pluralismo desordenado acabaram por ser uma maneira mais eficaz de nos organizarmos do que a tomada de decisões centralizada.

Como essas ideias podem ser atualizadas para um cenário muito diferente? Vamos começar pela regulamentação. Musk afirma constantemente ser um defensor da liberdade de expressão, um guerreiro contra a “censura”. Desde a vitória de Trump, Zuckerberg encerrou as colaborações com checadores de fatos e disse que o Facebook está voltando às “raízes em torno da liberdade de expressão”. Ele espera que o governo dos EUA apoie sua empresa contra governos que tentarem impor “censura” (ele parece querer dizer outras democracias, mais que ditaduras). Maria Ressa, a jornalista filipina ganhadora do Prêmio Nobel da Paz que foi difamada, ameaçada e teve sua reputação quase destruída por influenciadores aliados ao governo, teme que essa “liberdade de expressão” signifique de fato permitir que os poderosos destruam seus críticos.

As alegações das plataformas de rede social de apoiar a liberdade de expressão são vazias. Pouco antes de decidir atacar Starmer, Musk foi pego em um escândalo doméstico. Quando influenciadores do Maga o atacaram devido ao seu apoio a um certo tipo de visto de imigrante, a plataforma X parece ter suprimido suas contas.

As alegações das plataformas digitais de apoiar a liberdade de expressão são vazias

Liberdade de expressão também significa o direito de receber informações. E, atualmente, as empresas de rede social operam por trás de uma cortina. A resposta é uma transparência radical que exige mais informações sobre como elas funcionam. Estão suprimindo certos pontos de vista? Nesse caso, por quê? Elas estão coibindo ou de fato estimulando campanhas orquestradas para subverter a integridade eleitoral? Estão fazendo algo para restringir ou encorajar tumultos violentos? O que elas estão fazendo para proteger as crianças do aliciamento sexual?

Para tanto, pesquisadores independentes precisam ter acesso aos dados das empresas. Isso é estipulado nas novas leis da União Europeia, mas não nos Estados Unidos. Há uma crescente divisão de transparência entre a Europa e os EUA, mas é a América que tem menos liberdade de expressão nesse sentido. E isso dá aos cidadãos menos opções e ações para entender o que veem e como – tudo é controlado por CEOs de tecnologia.

Regulamentar trechos isolados de discurso online é inútil e frequentemente errado, a menos que eles se encaixem numa ilegalidade existente. Mas eu, como cidadão, deveria ter o direito de saber por que estou vendo um trecho de conteúdo e não outro, como meus dados estão sendo usados para me manipular e por quem. Eu deveria saber se meus filhos estão protegidos online e se as empresas de rede social fazem alguma coisa, ou estão de fato encorajando a subversão do meu voto. Até que seja levantada a cortina sobre como os Musk e Zuck atuam, somos uma sociedade a operar no escuro, influenciada e moldada por forças que não podemos ver.

Eli Pariser, fundador da Avaaz, incentiva a pensar na internet como uma cidade. Atualmente, temos espaços comerciais – o Facebook é uma espécie de shopping center onde você é consumidor e produto. Temos as vielas violentas onde bandidos algorítmicos controlam tudo, impulsionando quem os bajula e punindo os outros. Mas onde estão as versões da internet dos espaços públicos, as esquinas de oradores, reuniões públicas, bibliotecas? Na Europa e no Reino Unido, onde existe uma tradição de mídia de serviço público bem-sucedida, elas poderiam ser financiadas publicamente. Nos Estados Unidos, o acadêmico – e inventor do anúncio pop-up – Ethan Zuckerman sugeriu um imposto especial sobre empresas de rede social com fins lucrativos para financiar as cívicas.

E, finalmente, precisamos de um novo tipo de jornalismo que aborde a popularidade da desinformação e das teorias da conspiração, em primeiro lugar. Passamos muito tempo nos preo­cupando com o lado da oferta de desinformação e teorias da conspiração, e não com o motivo pelo qual os usuários são atraídos por elas, para começar. Quando pesquisei teorias da conspiração, descobri que estão conectadas a pessoas que não sentem que têm um senso de grupo. Comunidades de conspiração de rede social dão a elas um senso distorcido e falso que, em última análise, serve aos interesses dos líderes. Em vez disso, precisamos de um jornalismo que intervenha antes. Jeff Jarvis, ex-chefe de jornalismo da City University de Nova York, propõe que repensemos a atividade, não puramente sobre comunicar fatos, e mais como um serviço social que responde às frustrações e ao sentido de abandono dos indivíduos. Significa reorganizar o que você pensa sobre os assuntos que cobre e como você avalia seu impacto: simplesmente obter cliques não basta.

Há um eco da ideia de esfera pública do século XVIII. A mídia torna-se menos sobre “objetividade” e mais sobre ajudar a efetuar mudanças. Isso não significa que a forma mais antiga de jornalismo desaparecerá, mas novas formas também são necessárias. Você não pode simplesmente regular sua saída da desagradável mídia Musk em uma democracia. Teremos de competir. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1345 de CartaCapital, em 22 de janeiro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Liberdade sequestrada’

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Last Update: 16/01/2025