Mahmoud Khalil seguiu a cartilha do “bom” cidadão norte-americano e ainda não escapou das garras do poder. Nascido na Síria em uma família de refugiados palestinos, imigrou para os Estados Unidos dentro das regras. Obteve um green card, cursou uma escola de prestígio, casou-se com uma norte-americana e em menos de um mês terá um filho. Acaba de descobrir, da pior maneira, que seu lugar é na segunda classe. No sábado 8, o mestre em Administração Pública pela Universidade ­Colúmbia estava em casa quando foi preso pela polícia de imigração, sob a acusação de liderar manifestações nos campi da universidade no ano passado contra o genocídio na Faixa de Gaza. Sua cidadania foi cancelada e a mulher grávida tem sofrido ameaças de detenção por motim e conspiração.

A prisão de Khalil repercutiu em todo o mundo, comoveu nova-iorquinos e foi o estopim para uma onda de protestos na mais cosmopolita cidade dos Estados Unidos. Letitia James, procuradora-geral do estado de Nova York, escreveu em sua conta no X estar “extremamente preo­cupada com a prisão e detenção de Mahmoud Khalil” e se colocou à disposição da advogada do ativista. Na segunda-feira 10, um suspiro de razão em meio à loucura: o juiz federal Jesse Furman bloqueou qualquer intenção imediata da ­administração Trump para deportar o manifestante. Na quarta-feira 12, Furman convocou a primeira audiência para discutir o caso do americano-palestino, que não tem antecedentes criminais, mas, tudo indica, acreditou que todos eram iguais perante a lei e na tão aclamada Primeira Emenda da Constituição, promulgada para, em teoria, resguardar a “liberdade de expressão” de qualquer cidadão em território norte-americano.

A detenção de Khalil faz parte da perseguição à Universidade Colúmbia

O governo Trump tem relativizado inúmeros direitos básicos e a manipulação da Primeira Emenda é o caso mais explícito. Ela só é uma cláusula pétrea para o espectro da sociedade que o apoia, composto em grande medida de extremistas, xenófobos, racistas e divulgadores de fake news. Na plataforma Truth Social, o republicano não apenas comemorou a detenção de ­Khalil. Prometeu manter essa postura a todo vapor. “Esta é a primeira prisão de muitas que virão. Sabemos que há mais estudantes na Colúmbia e em outras universidades pelo país que se envolveram em atividades pró-terroristas, antissemitas e antiamericanas, e a administração Trump não tolerará isso. Muitos não são estudantes, são agitadores pagos. Encontraremos, apreenderemos e deportaremos esses simpatizantes terroristas para nunca mais retornarem. Se você apoia o terrorismo, incluindo o massacre de homens, mulheres e crianças inocentes, sua presença é contrária aos nossos interesses de política nacional e externa, e você não é bem-vindo aqui. Esperamos que todas as faculdades e universidades dos Estados Unidos cumpram”, ameaçou na plataforma.

Ao retornar à Casa Branca em janeiro deste ano, Trump assinou um decreto sob medida para perseguir os manifestantes pró-Palestina. Escorada na premissa de “combate ao antissemitismo”, a ordem executiva permite a suspensão dos vistos de estudantes estrangeiros que participaram ou venham a participar de protestos contra os massacres promovidos pelo exército israelense. Em 4 de fevereiro, o presidente dos EUA anunciou que o financiamento federal será interrompido para qualquer faculdade, escola ou universidade que permitisse protestos considerados ilegais. “Agitadores serão presos ou enviados permanentemente de volta ao país de onde vieram. Estudantes americanos serão expulsos permanentemente ou, dependendo do crime, presos”. Embora não especificasse o significado de “protesto ilegal”, a mensagem veio a público um dia depois de o governo determinar a revisão dos contratos com a Universidade Colúmbia, uma perda de receita de cerca de 400 milhões de dólares. A desculpa para o corte? A “contínua inação da escola diante do assédio implacável a estudantes judeus”.

Supremacia. Musk explicitou de forma tosca as novas regras de Washington. Nazistas não serão incomodados, apesar do suposto combate ao antissemitismo – Imagem: Angela Weiss/AFP

Trump, aliás, não faz o menor esforço para camuflar o ímpeto de perseguição a Colúmbia. A universidade, sediada em Nova York, cidade natal do presidente, reflete a ojeriza local ao magnata condenado pela Justiça em dois processos criminais, um por abuso sexual e difamação, outro por fraude financeira. Em 2024, os ­nova-iorquinos deram 30% dos votos ao republicano e 68% à democrata Kamala Harris. Enfraquecer uma das instituições mais renomadas do país, em uma área na qual a oposição domina, soa como uma revanche contra a cidade e um recado ao mundo.

O discurso de “combate ao antissemitismo” perde, no entanto, o sentido quando se analisa o cenário nacional, onde grupos neonazistas se manifestam livremente em todos os cantos. Nos EUA, as células nazi não precisam temer a mão forte do Estado. Estão protegidas pela Primeira Emenda e pelas forças de segurança, e não é incomum esbarrar em manifestações públicas de ódio aos judeus e aos cristãos, aos não brancos e à comunidade ­LGBTQ+, além das odes a Adolf Hitler e ao III Reich. Os movimentos se multiplicam: Red Shirt ­March (em português “Marcha dos Camisas Vermelhas”), ­Nationalist ­Social Club ­(NSC-131), Blood Tribe, The ­Base, ­Patriot Front e o Exército ­Nacional Ariano, entre outros. Com o retorno de Trump ao poder e o aceno (literal) de Elon Musk à extrema-direita no dia da posse, em 20 de janeiro, ­neonazistas se animaram e abandonaram o resto de pudor, se havia algum.

Trata-se de um amplo “ataque às instituições”, afirma Jon Lewis, da Universidade George Washington

Jon Lewis, pesquisador da Universidade George Washington, especialista em terrorismo doméstico com foco na evolução dos movimentos de supremacia branca e antigovernamentais nos Estados Unidos, afirma que na última década houve um aumento massivo de grupos neonazistas e de extrema-direita, encorajados por uma resposta muito morna dos órgãos de repressão e apoiados na Primeira Emenda. Os protestos nas universidades têm merecido, porém, uma resposta diferente do Estado, pois se tornaram um veículo muito útil para os ataques de atores antidemocráticos. “Vimos algo semelhante em resposta aos protestos do Black ­Lives Matter, em 2020, quando houve um esforço para pintar com um pincel largo o movimento como terrorista, anarquista ou inerentemente violento. E há conexões com o que acontece agora, especificamente com o Students for Justice in Palestine, que passou a ser designado como grupo terrorista, abrindo a porta não somente para esse potencial de abuso do governo, mas para uma mensagem a todo racista, todo supremacista branco que procura uma justificativa para cometer violência, dizendo a eles: ‘Ei, se você for a este campus e cometer violência, estaremos do seu lado porque achamos que todos desse lado são terroristas, não pertencem a este lugar e devem ser deportados’. Essa tentativa realmente descarada de pintar um movimento inteiro como terrorista, violento e antiamericano apenas perpetua muitas dessas conspirações realmente racistas, xenófobas e odiosas.”

Revanche. O republicano está obcecado em enfraquecer as universidades do país – Imagem: Molly Riley/Casa Branca Oficial

Segundo o pesquisador, o governo deveria encontrar melhores maneiras de impedir o extremismo violento e o antissemitismo. “Deportar estudantes universitários certamente não pode estar no topo da lista de desafios que enfrentamos, quando falamos sobre extremismo violento. Esses universitários não estão indo para as sinagogas e cometendo violência. E, sendo bem franco, universidades como Colúmbia foram agressivas quando reprimiram muitos desses protestos no ano passado. Então, o que seria suficiente? É importante chamar as coisas pelo nome. À medida que temos essa supremacia branca generalizada, à medida que temos essa adoção cada vez mais ampla de conspirações supremacistas brancas realmente odiosas e antissemitas como o Great­ ­Replacement, à medida que elas se infiltram no poder e nos sentimos confortáveis em fustigar a liberdade de expressão com a qual a administração discorda, isso cria um efeito assustador e é realmente perigoso, porque uma das coisas sobre as quais este país foi fundado é a Primeira Emenda e, como estamos vendo, isso é parte de um ataque antidemocrático mais amplo às instituições. E a verdade é que ficamos muito bons ao longo dos anos em impedir o terrorismo estrangeiro, aqueles maus e assustadores de fora que nos odeiam por causa da nossa liberdade. Mas nunca soubemos, e ainda não sabemos, o que fazer quando somos o problema.”

A prisão de Khalil e o estrangulamento financeiro de Colúmbia repete uma das estratégias centrais do extremismo de direita no mundo. Atacar a educação, assim como a cultura e a ciência, faz parte de um projeto de poder de longo prazo. Trump dá, no entanto, um passo além. Acaba de transformar em outro constrangimento o orgulho ufanista da “terra da liberdade”. O republicano substituiu a Primeira Emenda pela lei da selva. Vence quem urra mais alto. •

Publicado na edição n° 1353 de CartaCapital, em 19 de março de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Liberdade seletiva’

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Last Update: 13/03/2025