Série Piauí Cultura Regional (21)

Lezeira de São Francisco do Piauí é retomada

Brincadeira se encontrava em estado de memória

por Eduardo Pontin

A Lezeira no município de São Francisco do Piauí, no Sudoeste do estado, existe ao menos há um século nas comunidades negras rurais Veredas e Serrinha. Porém, segundo a narrativa de seus detentores, há cerca de 50 anos deixou de ser praticada de forma contínua, até praticamente se extinguir. Foi às voltas do Primeiro Festival de Cultura Popular de São Francisco do Piauí que a agente territorial de cultura Mary Quaresma teve a ideia de retomar a Lezeira na cidade. Para isso, buscou conversar com brincantes veteranos da Serrinha, como Dona Lúcia e Dona Francisca. A Lezeira desapareceu da rotina dos moradores desses povoados, mas nunca deixou de existir no íntimo de quem a brincou.

Apostando nisso, Mary começou a dialogar com quem ainda alimentava a chama da Lezeira em sua alma. A partir desse diálogo, as regras da arte sobre como funcionam o canto e a dança da Lezeira foram absorvidas. Em seguida, um grupo composto por pessoas que em sua maioria nunca haviam brincado a Lezeira foi formado.

Após semanas de ensaios, a Lezeira da Serrinha se apresentou nesse último dia 21 de junho na noite de encerramento do Primeiro Festival de Cultura Popular de São Francisco do Piauí. Uma responsabilidade e tanto. Mas o grupo deu conta do recado, diante da população do município e de autoridades políticas locais.

Lezeira no 1º Festival de Cultura Popular de São Francisco do Piauí | Foto: Francisca Sousa

O grupo ficou muito satisfeito com o resultado. A semente foi plantada. Uma vez a brincadeira retomada, é difícil de terminar. Os próprios detentores já se animaram e agora estão combinando rodas de Lezeira espontâneas. Dessa vez, longe dos holofotes e das autoridades da cidade, mas junto do calor humano do interior, nas próprias comunidades negras rurais Veredas e Serrinha, onde a Lezeira é secularmente brincada nesta região.

Primeiro Festival de Cultura Popular de São Francisco do Piauí

Idealizado pela Secretária de Cultura do munícipio, Rosângela Carvalho, o Primeiro Festival de Cultura Popular de São Francisco do Piauí teve 100% de aval do Prefeito Fabiano Araújo (PT), que se entusiasmou com a ideia e organizou um evento para ficar na história da cultura do Piauí. Com estrutura que incluía palco, telão, sonorização profissional, arquibancada e barracas com comidas típicas e artesanato, o Festival teve apresentação de Reisado, Capoeira, Quadrilhas e, claro, Lezeira. Foi sem dúvida uma iniciativa exemplar, demonstrando que quando há uma gestão municipal sensível e inteligente, a identidade local é fortalecida e quem ganha é a própria população da cidade. Um evento para servir de modelo e que poderia se espalhar para municípios vizinhos.

Seu Marcos – 101 anos de ancestralidade

Na comunidade Negra Rural Veredas, Seu Marcos (Marcos Rodrigues de Sousa, 1924-) é o morador mais longevo. Hoje seu Marcos tem dificuldades de audição, por isso conversa pouco. Mas segundo seus filhos, seu pai dava valor a uma Lezeira, sendo um grande dançador da brincadeira. Seu Marcos é muito querido na comunidade Vereda e tem uma família muito grande. Durante seus 101 anos de vida, viu nascer 14 filhos, 45 netos, 64 bisnetos e 11 tataranetos.

Seu Marcos em sua casa nas Veredas, com altar da novena de São João ao fundo | Foto: Francisca Sousa

Seu João Luiz – Grande Cantador

Filho de Seu Marcos, Seu João Luiz (João Luiz Rodrigues, 02/07/1951-) foi apontado por Dona Francisca e Dona Lúcia como um dos maiores cantadores de Lezeira que elas conheceram. Assim como todos os outros brincantes que entrevistamos para essa reportagem, Seu Luiz trabalhava como agricultor. Seu Luiz nos contou que há muitas décadas a Lezeira de ser praticada na região, mas ficou animado com a possibilidade da sua retomada e quer ajudar.

Seu João Luiz pretende ajudar na retomada da Lezeira | Foto: Francisca Sousa

Dona Francisca – Guardiã

Dona Francisca (Francisca Pereira da Silva, 10/10/1947-) se emociona ao recordar a Lezeira de seu tempo, quando brincava com sua mãe, seus parentes, amigos e vizinhos. Talvez para evitar recordações de pessoas amadas que já se foram, decidiu não dançar a Lezeira nesse processo de retomada. Mas nem por isso deixa de orientar e ensinar, cuidando desse momento da Lezeira como quem cuida de um filho que está saindo de casa para ganhar o mundo, sendo a guardiã desta brincadeira na Serrinha.

Dona Francisca zela a Lezeira | Foto: Francisca Sousa

Dona Lúcia – Cantadeira Fina

Dona Lúcia (Lúcia Pereira da Silva Dias, 11/12/1957-) é a mais animada participante da Lezeira da Serrinha. Também é a única cantadeira que faz parte do grupo de retomada. Infuluída, quando começa a cantar ninguém segura e a Lezeira fica com gosto de quero mais. Se depender de Dona Lúcia, a Lezeira de São Francisco do Piauí nunca vai morrer.

Dona Lúcia cantando Lezeira no Festival | Foto: Francisca Sousa

Dona Belém – Esperança

Dona Belém (Maria Belém Rodrigues Bispo, 20/09/1965-) é a mais animada do grupo da Lezeira da Serrinha. Isso porque, mesmo sem nunca ter brincado antes, cresceu observando as lezeiras que eram feitas em sua região, sempre com vontade de participar. A partir do convite de Mary para a retomada da Lezeira, não teve dúvida e hoje exerce a função de aglutinadora, organizando, orientando e incentivando o grupo. Dona Belém representa a esperança do renascimento da Lezeira na Serrinha. Belém recebeu a Lezeira em sua vida como recebe as pessoas em sua casa: com os braços abertos e o coração caloroso.

Dona Belém: portas abertas para a Lezeira | Foto: Francisca Sousa

Enquanto houver Franciscas, Beléns, Lúcias e Luizes alimentando a chama da Lezeira em seu íntimo, a qualquer momento as novas gerações podem reacender esse fogo e reviver essa brincadeira que ancestralmente vem sendo passada de geração em geração. A Lezeira de São Francisco do Piauí está em franco processo de retomada.

Em São Francisco do Piauí, a Lezeira vai continuar! | Foto: Francisca Sousa

A realização desta reportagem foi possível graças ao apoio da Prefeitura de Floresta do Piauí, sob a gestão de Claudionor.

Eduardo Pontin é filósofo e há mais de 10 anos desenvolve estudos e pesquisas de campo no universo do samba e da cultura popular brasileira. Produtor Cultural, vem trabalhando no processo de patrimonialização imaterial da Dança da Lezeira do Piauí, tendo atuado junto ao IPHAN para que esta expressão seja considerada Patrimônio Cultural Brasileiro. Recebeu 1ª Menção Honrosa no Prêmio Nacional Sílvio Romero de Monografias sobre Folclore e Cultura Popular 2022, com o livro “Lezô, Lezá, Vamô Vadiá, Nesta Lezeira – Ancestralidade e Simbolismo na Dança da Lezeira do Sertão do Piauí”.

Categorized in:

Governo Lula,

Last Update: 24/06/2025