A cada vez que abrimos um livro, entre o olho e a superfície do papel acontece um milagre. Vemos as sequências de letras mas quando as percorremos com a visão, nosso cérebro as transforma em imagens, pensamentos, cheiros, vozes (…) ao contrário do que pensam alguns acadêmicos, a literatura deve ser uma arte não elitista, mas cotidiana (…) deve como uma lanterna iluminar mas sob um ângulo diferente para que o conhecido se revele totalmente desconhecido, o domesticado se mostre selvagem, o seguro, suspeito. – Escrever é muito perigoso, Olga Tokarczuk
Podemos esbarrar com nossas fragilidades e desejos mais íntimos; podemos indagar sobre a vida e o mundo; podemos repensar os caminhos escolhidos no cotidiano; podemos tanta coisa! E talvez – entre as anarquias produzidas no cérebro – uma das mais desafiadoras seja não desistir da leitura frente ao desconhecido, a tudo que não nos é familiar. A coletânea de ensaios e conferências da escritora polonesa vale cada mergulho em seu mundo, onde a literatura, a psicanálise, a crítica ao racionalismo antropocêntrico e à mercantilização da arte e da vida nos conduz para seu pensamento caleidoscópico.
Sobre a autora
Olga Tokarczuk nasceu em 1962, em Sulechów, Polônia. Sua família deixou a Galicia (região do leste Europeu entre a Polônia e Ucrânia) para viver na fronteira com a República Tcheca pouco depois da II Guerra Mundial. Cercada de livros na biblioteca de sua casa, graduou-se em Psicologia pela Universidade de Varsóvia e trabalhou como terapeuta em hospitais tratando de casos graves, antes de se dedicar totalmente à literatura. Ativista feminista e ambientalista, atualmente vive na pequena aldeia de Krajanów na fronteira com a República Tcheca. Considerada uma targowiczanirf/traidora pela extrema-direita polonesa e grupos religiosos, chegou a receber ameaças de morte em função de sua obra subversiva “Os livros de Jacob” e por afirmar que a Polônia também oprimiu povos ao longo de sua história. Autora de vários outros romances, contos e ensaios.
Desfragmentação, rupturas e espaços infinitos
“O andarilho conseguiu chegar ao fim do mundo (…) essa gravura de origem desconhecida constitui uma metáfora perfeita do momento em que todos nos encontramos.” (p. 07)
A gravura, publicada em 1888 pelo astrônomo francês Camille Flammarion, impressiona a autora desde a infância e parece ter tido um efeito profundo em sua formação. Segundo ela, a imagem do viajante – que chega no fim do mundo e ao esticar a cabeça para além da esfera terrestre se depara com o cosmos – sempre abre novos significados e define o ser humano de forma diversa do Homem Vitruviano de Leonardo da Vinci – “estático e triunfalista, enquanto uma medida do universo e de si mesmo”. O andarilho, sob o olhar aguçado da escritora, vive hoje num mundo que se apequenou, preso às contradições em que a mobilidade só é acessível a poucos e saturado de imagens e informações num imenso panóptico. A imaginação tornou-se dispensável nesse ambiente homogeneizado, repleto de não-lugares e repetições. À normatização imposta pelo capital ela clama por imaginação e novas formas narrativas na literatura que deixem vir à tona o que nomeia de “espaços infinitos que escapam à nossa razão.”
Sua defesa de uma literatura calcada na afirmação da imaginação e no que define como excentricidades não perde de horizonte o sentido de totalidade. Além de questionar a subdivisão estanque de obras por gêneros, Olga busca na percepção por acontecimentos e situações o conhecimento intuitivo – síntese e associação de fatos que aparentemente são desconexos, mas que se mostram interdependentes. São nessas pequenas coincidências e acasos que capta a matéria prima de suas histórias, como sua ida a um sebo na década de 90 desencadeou a obsessiva construção – por anos a fio – da monumental (quase mil páginas que lhe renderam a premiação do Nobel e ainda não traduzido no Brasil), história romanceada do movimento herético polonês – frankismo – no século XVIII.
A questão das mulheres e o ambientalismo
Presume-se que o primeiro ser humano a assinar o próprio texto literário passando a ser a primeira pessoa que escreve , foi Enheduana, sacerdotisa acádia da deusa Inana.(…) transmite uma experiência profunda e íntima que atravessa o tempo e se mantém universal(p. 80)
Para além do ativismo feminista e ambiental, as referências às mulheres e crítica ao antropocentrismo aparecem com frequência na obra. Em ensaios sobre os sentidos da literatura como expressão de experiências ao mesmo tempo singulares e universais, além de Enheduana, traz à luz a mulher considerada mentora de Sócrates – Diotima, considerada à época uma grande sábia, profetisa e médica. Já em seu discurso quando da premiação ao Nobel, as memórias de infância com sua mãe surgem como portas de acesso a um mundo mais sensível. A lembrança da primeira foto que tem conhecimento ilustra bem isso. Nela sua mãe aparece olhando para fora do alcance de quem a estava fotografando, com um ar melancólico. Parecia olhar o tempo, longe. Ao ser indagada pela pequena, a resposta dada confirmou a fantasia: estava triste porque Olga ainda não existia; uma espécie de saudades do futuro.
Olga escreve também sobre o impacto das leituras que sua mãe fazia. Numa delas, de Hans Christian Andersen, um bule de chá jogado no lixo se queixava que fora tratado de modo cruel pelos homens – foi descartado quando sua asa se quebrou. Outros artefatos estragados o acompanhavam, contando histórias verdadeiramente épicas de suas pequenas vidas de objetos. Lembra do sofrimento sentido – no seu universo de criança, tudo então se tornava vivo, toda a paisagem, todo o mundo, visível e invisível. Me pergunto sobre o quão interessantes e rebeldes foram essas referências num estado operário dominado por uma burocracia atroz como na Polônia do pós-II Guerra Mundial.
Muitos anos depois, essa menina se transmuta na adulta ambientalista que percebe como a tradição judaico-cristã afirma a terra e todas as espécies vegetais e animais como criaturas cuja única função é servir à (alguns da) espécie humana. Desde escritos no Gênesis, passando por Aristóteles, São Tomás de Aquino entre outros, há um longo processo em que se hegemoniza essa concepção de mundo que – sob o domínio contemporâneo da máquina imperialista de produção – maximixa o sofrimento de outras espécies. Único romance traduzido no Brasil “Sobre os ossos dos mortos” – trata desse tema caro à autora, que – segundo a crítica especializada – é um romance policial em que os animais se vingam dos males sofridos.
Por fim, como escreveu a jornalista Berna González Harbour, do Jornal El País (22.08.2020), “Há autores fáceis que nos dão tudo mastigado. E há os mais difíceis, mais desafiadores, que nos fazem trabalhar. Tokarczuk nos entrega a pá e nos diz: cave”.