Por Lelê Teles*
a música sertaneja tem origem na música caipira que era cantada no início do século vinte por pessoas que viviam na roça.
esses matutos, nos ensina o grande estudioso antônio cândido, viviam na paulistânia, uma vasta região que nascia nos sertões do cerrado, rasgava o solo de são paulo e se arrastava até o paraná.
eram caboclos os que tocavam viola, a música caipira é uma mistura das danças indígenas cateretê e cururu, esta última deu origem à catira, uma dança caipira feita de palmas e sapateados, acompanhada pela viola de cocho.
foi cornélio pires quem trouxe a novidade para as cidades no início da década de ’20, lotando pequenos circos e enchendo de alegria uma gente que chegava acanhada e ainda saudosa da lúdica vida do campo.
a novidade virou um fenômeno radiofônico.
por muito tempo, o nome das duplas já denunciava a cor dos cantores: tião carreiro e pardinho, zé mulato e cassiano, pena branca e xavantinho e tinha, ainda, cascatinha e inhana, o lindo casal de negros de voz doce e encantadora.
as músicas exaltavam a natureza, o amor, criticavam o sistema capitalista e falavam até de macumba.
hoje os cantores são todos brancos e suas músicas só falam de chifre, helicópteros e mansões com portas projetadas para entrar golias e annunakis.
talvez, em homenagem a cornélio, o sertanejo tenha virado uma música de corno, mas abandonou suas raízes e se tornou trilha sonora do desmatamento e da devastação.
para deixar a boiada passar sem ser perturbada, o agro investiu na música para distrair a massa.
e criou um gênero transgênero e transgênico, substituindo a viola caipira pela guitarra elétrica, a bateria, o contra-baixo e o sintetizador.
assim, o agronegócio passou a investir no soft power, inundando a indústria cultural com o cobiçado agro money e forjando um gênero musical canibal que antropofagiza tudo ao seu redor.
com a força da grana, que ergue e destrói coisas belas, compram todos os espaços nas rádios, sufocam outros gêneros nas plataformas digitais, dominam os programas de auditório, implantam agroboys e agrogirls em realities shows, patrocinam novelas, filmes, programas jornalísticos e já chegaram ao xvideos e ao only fans.
a popozuda anitta já alertava, além de sugarem verbas públicas de pequenos municípios, esses farsantes estão de olho no tororó do funk.
não deu outra, surgiu o funknejo, com bumbuns granadas turbinados com agrotóxico, silicone, ovos caipira e leite in natura.
em seguida, veio o trapnejo, o breganejo, o forrónejo, o trancenejo e dois outros subgêneros já estão aquecendo nos fornos das carvoarias fonográficas: o metalnejo e o gospelnejo.
o embaixador do gospelnejo é o pastor valdemiro santiago, que enche as burras fazendo propaganda nos púlpitos usando um chapéu de cowboy do asfalto.
as músicas do gospelnejo, conforme apurei, mostrarão jesus como o bom semeador e um pastor de ovelhas que vivia nos campos.
as letras abordarão o famoso sermão sobre o grão de mostarda, que será substituído por grãos de soja, lembrarão do episódio da cobra e da maçã, da vara de porcos, do asno de balaão, abordarão ainda a sarça incandescente, a figueira seca, o homem engolido por uma baleia, a oração no monte das oliveiras, enfim, buscarão a volta do cristianismo rural e brejeiro.
mas sobre isso falo depois, hoje o assunto é o metalnejo, cujo embaixador é andreas kisser, do sepultura.
quando kisser subiu no palco com xitãozinho e xororó foi aquele xororô, as viúvas barbudas de max cavalera viram ali o enterro da lendária banda brasileira.
não deu outra, o sepultura está encerrando sua carreira no death/thrash e kisser se tronará o grande empresário do metalnejo, uma espécie de puff daddy de cabelos lisos.
talvez você não tenha percebido, mas a transição do gênero começou quando bandas de forró passaram a gravar músicas do scorpions e do angra.
“as letras do scorpions tem tudo a ver com o sertanejo”, disse andreas kisser, “still loving you é sobre um canceriano que não consegue conviver com a rejeição de uma mulher e tenta reconquistá-la chorando e se lamentando; isso é sertanejo na veia”, completou o famoso headbanger.
a grande jogada da indústria foi colocar, no mesmo palco, o baixista do rio grande do norte, júnior groovador, ao lado de black jack, o fundador da escola de rock, em pleno rock in rio, o que deu ao subgênero um caráter internacional.
foi tudo uma grande jogada do agromarketing, groovador já havia feito uma versão sertaneja de smells like a teen spirit, do nirvana.
aos poucos, eles vão introduzindo esse crossover na mente dos metaleiros.
todos sabemos que grande parte dos músicos que tocam em bandas sertanejas são roqueiros frustrados, cujas bandas não deram em nada.
então, os músicos já estão lá, a música é que tá chegando agora.
o público também tá lá, como sabemos, uma parte considerável de metaleiros são reacionários, fascistinhas vagabundos e direitistas de merda, o típico público que o sertanejo curte.
régis tadeu, importante crítico musical e também cooptado pelo agro money, justificou a transição:
“satanás traiu o metal”, afirmou o barbicha, “embora o capiroto sempre tenha sido cultivado e cultuado em shows extremos, o diabo nunca deu as caras em arenas de rock, mas vive frequentando igrejas evangélicas, onde é humilhado em línguas estranhas. traídos, os metaleiros se decepcionaram com o capeta e agora só querem beber e chorar”, explicou.
“o tema da música sertaneja”, continuou o jovem crítico de cabelos brancos, “é o chifre, e o metaleiro já faz chifrinho com as mãos desde sempre, ou seja, o chifre não é uma invenção do agro, mas uma descarada apropriação, os metaleiros vieram buscar o que é deles”, diz tadeu.
kurral de sangue é o nome da primeira banda de metalnejo, que tem em sua formação o guitarrista yohan kisser, o baterista júnior xororó, o baixista joão pedro (filho de joão gordo) e, na voz, a inigualável sandy xororó, que teve aulas de metal melódico com a finlandesa tarja.
é uma bandinha nepostista de nepo babies virtuosos.
mas a grande aposta da agroindústria cultural vem de minas gerais, estado que pariu o sepultura.
lá no interior profundo, nas virgens terras do jeca tatu, surgiu um novo fenômeno, trata-se da banda os filhos de cruz credo que misturam dor de cotovelo, death metal, pão de queijo e cafezim.
os desalmados já se tornaram um hit na internet.
agora, além de garotas de botas de cano alto e caras com calças apertadas partindo ovos, teremos cabeludos maquiados dançando com a mão na testa e chorando.
os empresários que exploram a terra, mandam e desmandam, matam e desmatam, seguem entretendo o grande público com seus fajutos cantores fanhos e sua musiquinha vagabunda.
agora vamos ter a versão gutural de evidências.
acostumados a preparar o solo, roceiros roqueiros trocam a enxada pela guitarra.
o diabo se contorce no inferno.
palavra da salvação.
*Lelê Teles é jornalista, publicitário, roteirista e mestre em Cinema e Narrativas Sociais pela Universidade Federal de Sergipe (UFS).