Por Lelê Teles*
tudo o que mamãe queria era ter uma menina, esse era um sonho que ela alimentava desde garotinha.
mas a primeira gravidez lhe trouxe um menino.
ela não deixou de gostar, mas alertou papai de que a próxima seria uma menina.
avexada, ela nem esperou a menstruação descer e já engatou outra gravidez, segura de que desta vez a menina viria.
vieram gêmeos… e homens.
dois anos, três filhos.
o sonho da minha mãe estava virando um pesadelo para o meu pai.
mas ela não parou por aí.
na madruga, assim que saiu do resguardo, ela sussurrou no ouvido de papai: “a próxima é menina, a cigana me falou”.
foi uma cartomante que encorajou mamãe a crer na próxima gravidez, a pitonisa vaticinou que a menina viria e que seria uma mulher bonita, estudiosa e inteligente.
a tentação era grande demais e mamãe engravidou novamente.
a ultrassonografia ainda nem era utilizada no brasil à época, de modos que o sexo do bebê só era conhecido quando ele nascia.
e nasceu mais um menino.
mamãe estava frustrada, papai, furioso: três anos, quatro filhos.
a cartomante, assim que ouviu o boato do quarto menino, mudou-se de endereço e nunca mais a vimos.
mas um sonho é um sonho, e mamãe estava disposta a realizá-lo.
e ela buscou uma saída criativa, fez de mim, o caçula, a sua garotinha.
deixou meus cabelos crescerem e, nos finais de tarde, assistia ao pôr do sol comigo no colo, escovando as madeixas e me enchendo de cheiros e beijos.
eu vivia todo perfumado e com laço de fita ou tiara na cabeça.
vestia-me como uma menina e com as meninas eu brincava.
incorporei o ethos feminino e me comportava mulhermente.
e gostava disso.
sim, eu fui uma pequena miss sunshine.
até que, seis anos depois, veio a menina.
mamãe cortou-me o cabelo e disse que agora eu seria um menino.
resisti, ela me disse, bati o pé.
mas não tive escolhas, tive que reprogramar o meu cérebro e me readaptar.
ainda tenho saudades daqueles tempos em que eu fui uma garotinha.
tenho saudades da felicidade da minha mãe com seu brinquedinho nos braços.
tenho saudades da minha mãe.
palavra da salvação.
*Lelê Teles é jornalista, roteirista e mestre em Cinema e Narrativas Sociais pela Universidade Federal de Sergipe (UFS).