Por Lelê Teles*
fez sol o dia inteiro, deu praia.
aproveitei pra dar uma cochiladinha depois do almoço e das caipirinhas.
desperto e vou à varanda ver o vento ventar, o cenário é outro.
o céu, negro como um corvo, parece pesado.
ouço um barulho vindo de longe e se aproximando rápido, parece aplausos.
logo percebi que era água gritando nos telhados.
do nada, cai uma chuva grossa e barulhenta.
parece que o mundo vai desabar sobre minha cabeça.
venta forte, relampeia, troveja…
na rua, mulheres dão gritinhos e correm apressadas, com seus vestidos colados no corpo.
um motoqueiro, com uma caixa nas costas, desiste da entrega e se entrega ao abrigo de uma marquise.
foda-se se o cara tá com fome, é preciso uma arca pra navegar nesse dilúvio, a pop cem dele não tem a menor chance.
a vizinha do lado bate a porta da varanda com toda força e espragueja palavras impronunciáveis.
imagino que ela tenha acabado de gastar cem dólares no salão pra dar uma ajeitada na peruca.
perdeu tudo.
de repente, um raio rasga o céu negro, formando raízes elétricas e luminosas no firmamento.
agora vem a explosão, puuummmmmm, como se fosse um grande deus arrotando lá de cima.
o edifício inteiro treme, é difícil não se assustar.
“minha nossa senhora do perpétuo socorro”, gritou a vizinha da frente, em desespero, “desliga a tomada da geladeira, minina”, gritou pra dentro de casa.
o diabo deve estar sorrindo dessa satanagem, isso aqui vai virar um inferno em poucos minutos, é muita água!
os canais vão transbordar, jogando uma fétida água com fezes no meio da pista.
em pouco tempo, penso com os meus botões, as ruas estarão alagadas e o tráfego interrompido.
tem uma igreja quadrangular aqui na frente, a tempestade caiu bem na hora em que os crentes costumam chegar com suas bíblias no sovaco.
o pastor, claro, deve estar orando em línguas, tentando sabotar a chuva.
jesus costumava fazer isso, mas o fazia em aramaico.
e com ele dava certo.
ora, ora ora, mas o que está acontecendo aqui?
o vento parou de ventar e, subitamente, a chuva arrefeceu.
parece que foi uma daquelas tempestades repentinas e fugazes.
ou teria sido o desgraçado daquele pastor impostor interferindo no tempo?
com mil diabos, não é que a chuva parou de verdade!
tava tudo tão lindo, os raios, os trovões, o dilúvio, as mulheres com as roupas coladas, o entregador lanchando o lanche que deveria ter entregado…
eu gosto da confusão que a chuva provoca, mães correndo pros varais, em desespero, um bater de portas, um fechar de janelas.
todo mundo apavorado com o imponderável, o corre-corre, a confusão, os semáforos sem sinal…
e de repente isso, essa calmaria, esse rame-rame católico.
o motoboy partiu, os crentes começam a chegar.
aquele pastor idiota estragou a minha chuva, é por isso que deus não gosta desses caras.
palavra da salvação.
*Lelê Teles é jornalista, publicitário, roteirista e mestre em Cinema e Narrativas Sociais pela Universidade Federal de Sergipe (UFS).
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