Duas coisas são infinitas: o universo e a estupidez humana.” O aforismo costuma ser atribuído a Albert Einstein, com o irônico acrescimento de que o pai da Teoria da Relatividade só não estava totalmente convencido da validade da sentença no primeiro caso. Embora não haja comprovação histórica da citação, essa máxima cai como luva para explicar o atual momento do Brasil em relação à agenda ambiental. A seis meses de receber a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, o País, favorecido por seus ativos naturais e detentor de um dos maiores potenciais de geração de energia renovável do planeta, revela que também é infinita a vocação para o atraso de uma parte considerável de suas elites, viciadas no lucro fácil e abundante de atividades econômicas predatórias, como se devastação fosse sinônimo de desenvolvimento.

A contradição, explicitada de forma contundente nos últimos dias, tem no Congresso Nacional seu vetor principal, mas se manifesta também em alguns setores do próprio governo. Por ora, a procissão segue na contramão do que pretende o presidente Lula e pode tisnar a imagem de líder global e protagonista ambiental que o Brasil busca consolidar como anfitrião da COP30. Na terça-feira 27, Dia da Mata Atlântica, no mesmo momento em que integrantes dos ministérios da Fazenda, do Meio Ambiente e do ­Itamaraty se esforçavam, em um fórum realizado no Rio de Janeiro, para costurar acordos e projetos que permitam ao País levar adiante sua proposta de criação de um Fundo Ambiental Global de 1,3 trilhão de dólares anuais, em Brasília parlamentares da base governista tomavam parte em uma grotesca tentativa de achincalhamento à ministra Marina Silva, durante uma audiência pública na Comissão de Infraestrutura do Senado.

Antes do vexame no Senado, o governo tentava emplacar um Fundo Global do Clima com 1,3 trilhão de dólares por ano

Convidada para debater o projeto de exploração de petróleo na Margem Equatorial, tema que divide o governo, Marina passou a ser hostilizada pelos senadores que compõem a Comissão quando o debate resvalou para o projeto de pavimentação da BR–319, rodovia que liga Manaus a Porto Velho. O asfaltamento, visto como solução econômica pela maioria dos deputados e senadores da região, é apontado por ambientalistas como uma ameaça potencial à biodiversidade e possível pá de cal nas intenções globais de evitar que a Amazônia brasileira atinja o temido “ponto de não retorno” em seu desmatamento. “São mais de 5 mil obras paradas por entraves ambientais. A senhora atrapalha o desenvolvimento do País”, esbravejou o senador Omar Aziz, do PSD, aliado do governo.

A primeira grosseria provocou a reação da ministra e foi a senha para um vergonhoso episódio que misturou misoginia, racismo e intolerância política: “A mulher merece respeito, a ministra não”, disse o senador Plínio Valério, do PSDB – o mesmo que já havia manifestado em plenário o desejo de “enforcar Marina”. Mais adiante, indignado porque a ministra lhe apontou o dedo, o senador Marcos Rogério, do PL, exigiu: “Ponha-se no seu lugar.” Diante do clima hostil, Marina decidiu se retirar. “Fui convidada como ministra, então tem de respeitar. Ter disposição para o debate não significa que aceitarei ser tratada como capacho, com atitudes não condizentes com a democracia nem com o direito das mulheres consignados na Constituição.”

O êxito das ações de combate ao desmatamento tem sido ofuscado pelos retrocessos na legislação – Imagem: Polícia Federal

Logo após o episódio, Marina recebeu um telefonema do presidente Lula, que manifestou solidariedade à sua decisão, e contou com o apoio de poucos senadores governistas, como Jaques Wagner e Randolfe Rodrigues. Uma nota de repúdio foi divulgada pela bancada feminina do Senado: “É inadmissível que um parlamentar diga a uma mulher que ela deve ‘se colocar no seu lugar’. Essa frase, carregada de machismo estrutural, é mais do que um ataque pessoal, é uma tentativa explícita de silenciamento de mulheres que ocupam espaços de poder. Lugar de mulher é onde ela quiser”.

Reações à parte, o fato é que a ministra, carente de um apoio mais concreto no governo às vésperas da COP30, incomoda os interesses representados por aquele grupo de senadores exatamente por estar em seu devido lugar – o das imprescindíveis políticas de transição energética e sustentabilidade ambiental, estas, sim, propulsoras de um desenvolvimento econômico capaz de beneficiar o conjunto da sociedade brasileira, não apenas as oligarquias regionais. Se, no caso da Margem Equatorial, a chegada à presidência do Congresso do senador amapaense Davi Alcolumbre – novo “aliado estratégico” de Lula e entusiasta do projeto – faz tudo se encaminhar para uma derrota da ala ambiental do governo, outras frentes de disputa ainda estão em aberto. O empenho de Marina em algumas delas é o que explica politicamente o ódio manifestado por certos parlamentares.

O Brasil tem um dos maiores potenciais de geração de energia renovável do planeta

A ministra age, por exemplo, para tentar reverter os retrocessos trazidos pelo Projeto de Lei que afrouxa as regras do licenciamento ambiental, aprovado em 21 de maio com a decisiva ajuda de Alcolumbre, do União Brasil. Em tramitação acelerada, conduzida pelo presidente do Senado após mobilização liderada pela senadora Teresa Cristina, do PP, o projeto foi aprovado por 54 votos a 13, com o objetivo de criar um novo marco legal para o licenciamento de atividades econômicas ou empreendimentos com impacto ambiental e, nas palavras da ex-ministra da Agricultura de Jair Bolsonaro, “destravar as obras que o País necessita”.

Na prática, foi aprovado, com algumas mudanças, um projeto de desmonte que dormitava desde 2022 nas gavetas do Senado, gestado há duas décadas pela bancada ruralista no Congresso e aprovado em 2021 na Câmara, no estouro das “boiadas” do governo de Bolsonaro.

A senadora Tereza Cristina, ex-ministra da Agricultura de Bolsonaro, comanda a bancada do atraso no Congresso – Imagem: José Fernando Ogura/Prefeitura de Curitiba e Carlos Moura/Agência Senado

A mudança mais criticada pelo Ministério do Meio Ambiente é o fim do licenciamento ambiental como é realizado hoje, em três etapas: prévia, de instalação e de operação. Se o projeto for definitivamente aprovado em sua volta à Câmara, passará a vigorar no Brasil a Licença Ambiental Única (LAU), documento que simplificará em uma única etapa a concessão de licenças, sem a necessidade de realização de Estudos de Impacto Ambiental (EIA) e similares pelo Ibama e outros órgãos de controle.

Outra medida com provável impacto negativo determina que empreendimentos com potencial poluidor de pequeno e médio porte podem prescindir do EIA, desde que o empreendedor obtenha uma Licença por Adesão e Compromisso, documento autodeclaratório e com concessão automática. Outras novidades do PL aprovado que vão na contramão da COP30 são a liberação da pecuária extensiva em propriedades de pequeno e médio porte e o fim da participação de indígenas e quilombolas nas discussões sobre projetos com impacto ambiental executados em seus territórios, com exceção das áreas já homologadas.

Os combustíveis fósseis ainda são responsáveis por mais de dois terços das emissões globais – Imagem: iStockphoto

“O PL passa uma borracha no processo de licenciamento da BR–319, libera a estrada para ser asfaltada sem o mínimo de cálculo dos prejuízos associados a essa pavimentação, como grilagem de terra, destruição ambiental e invasão de ­áreas de comunidades tradicionais”, afirma Marcio Astrini, coordenador do Observatório do Clima. Segundo o ambientalista, o simples anúncio da retomada do projeto no governo Bolsonaro já fez com que o desmatamento na região explodisse nos últimos anos. “O crime organizado já entendeu que ali é um local propício para derrubar a floresta.”

A entidade vai apoiar Marina em seu esforço para reverter o prejuízo. Acompanhada por deputados de esquerda, a ministra se reuniu, horas antes de ser hostilizada no Senado, com o presidente da Câmara, Hugo Motta, do Republicanos, e dele ouviu que não há nesse momento pressa para pautar o PL do Licenciamento novamente na Casa. Também está agendada uma reunião para discutir os prováveis vetos de Lula: “Esperamos que o presidente honre os compromissos de campanha. Sabemos da retomada que sua equipe promoveu na área ambiental, e é exatamente por isso que não esperamos nada menos do que o veto”, resume ­Astrini. A base para a discussão é uma nota técnica feita pela liderança do governo no Senado, que elenca uma série de inconstitucionalidades do projeto. “Se o próprio governo entende que tem trechos inconstitucionais, o mínimo é vetá-los, mas esperamos que Lula vete integralmente esse projeto absurdo no conteúdo e na imagem negativa que traz para o País e o governo.”

Os desafios da Cop30 ficaram ainda maiores após Trump retirar os EUA do Acordo de Paris

Para o deputado federal Nilto Tatto, do PT, o PL aprovado pelo Senado “representa um dos maiores retrocessos socioambientais da história” e desmonta as regras do licenciamento ambiental no País. “Os impactos desse projeto sobre a vida da população serão severos. O Brasil retomou seu protagonismo internacional dando o exemplo com a diminuição do desmatamento, receberá a COP30 e tem a responsabilidade de liderar uma agenda mais incisiva para fazer frente ao aumento do aquecimento global.”

O petista avalia que o projeto aprovado trará morosidade aos processos de licenciamento por provocar mais judicializações e que o atraso político imposto pelo Legislativo pode enfraquecer o País junto à comunidade internacional. “Destruir a principal lei ambiental do Brasil deslegitima o papel do governo brasileiro no acordo do clima, além de prejudicar outras negociações comerciais em curso, como o acordo Mercosul–União Europeia.” Tatto propõe que o governo convoque o Comitê Interinstitucional de Gestão do Pacto pela Transformação Ecológica e elabore um novo texto para o licenciamento ambiental que defina uma agenda estratégica dos Três Poderes “para melhor aproveitamento da oportunidade histórica que o Brasil terá este ano com a presidência da COP e também do encontro dos BRICS”.

Para o advogado e ambientalista Rubens Born, diretor da Fundação Esquel Brasil e do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais (FBOMS), a aprovação do PL do Licenciamento revela que “a sociedade brasileira, por meio de seus representantes eleitos, ainda não incorporou a questão da sustentabilidade ambiental”. Ele aguarda a posição do governo. “Esperamos que o presidente Lula possa vetar aquilo que significa retrocesso, como o licenciamento por autodeclaração, que não funciona.” Experiente, Born faz uma ressalva: “Sabemos que a realidade política da Câmara e do Senado pode significar a derrubada do veto, já que estamos em um ano pré-eleitoral e a oposição tem uma maioria significativa. E essa oposição não é meramente ao governo Lula, mas oposição às questões ambiental, climática, indígena e de direitos humanos”.

O governo da maior economia do mundo não está mais comprometido com a agenda climática – Imagem: iStockphoto

Enfraquecer o licenciamento seria “um retrocesso enorme às vésperas da COP30”, avalia o ambientalista. “Embora não tire a legitimidade de ser anfitrião, esse desmonte revela uma contradição de longo prazo que existe no Brasil, mas também em outros países, que é não conseguir alterar as políticas de ­desenvolvimento econômico para incorporar as crises climática, de perda da biodiversidade e da poluição. Falta incorporar a crise ambiental global às políticas internas.” Born avalia que o cenário da COP30 não será fácil para o Brasil, graças a “forças políticas internas que ainda vivem no passado e querem ganhos imediatos”. Ele propõe que os governos federal e estaduais, além de lideranças empresariais da indústria, agricultura, comércio e turismo, “comecem a separar o joio do trigo nos seus respectivos campos, para garantir que o Brasil possa ter condições de produzir ambientalmente com sustentabilidade e sem injustiças”.

Enquanto rema contra a maré reacionária do Congresso, o governo luta para emplacar suas principais propostas para a Conferência do Clima que acontecerá em Belém, a partir de 10 de novembro. Durante o II Fórum de Financiamento Climático e de Natureza, que reuniu gestores públicos, empresários e ambientalistas no Rio, foi debatida a proposta, apresentada em abril pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, de constituição de um Fundo Global do Clima com uma dotação anual de 1,3 trilhão de dólares. Os recursos serão usados para o financiamento de ações de adaptação às mudanças climáticas e combate aos efeitos do aquecimento global nos países em desenvolvimento.

A bandeira do financiamento mobiliza, mas sua concretização é complicada em um cenário ambiental global adverso, sobretudo após o presidente Donald Trump anunciar a retirada dos EUA do Acordo de Paris. “O fluxo de financiamento para os países em desenvolvimento não é doação, não é caridade. O interesse em mobilizar esse montante deveria ser das nações desenvolvidas, que não estão liberando os recursos, como EUA, Europa e China”, afirma Ana Toni, diretora-executiva da COP30. O governo brasileiro trabalha para levar essa proposta adiante: “O financiamento climático tem de ser uma corresponsabilidade de países desenvolvidos e em desenvolvimento, de bancos multilaterais e privados. Sabemos que precisamos de mais, mas 1,3 trilhão de dólares é um bom começo.

Lago e Haddad mobilizam economistas e ministros de vários países para viabilizar o fundo trilionário – Imagem: Diogo Zacarias/Ministério da Fazenda e José Cruz/Agência

Presidente da COP30, o embaixador André Corrêa do Lago, também presente no Fórum, foi outro a defender a proposta de um fundo global vitaminado. Segundo Corrêa do Lago, “na COP29, foi aprovado o valor de 300 bilhões de dólares anuais, mas também uma resolução que reconhece que esse valor não é suficiente”. O diplomata anunciou a formação de um colegiado de notáveis que vai trabalhar na elaboração de uma proposta para que se alcance a cifra trilionária. “Criei um grupo de 18 economistas para me apoiar nesse esforço. Em paralelo, criamos também o Círculo de Ministros da Fazenda.”

Marcio Astrini avalia que o governo está testando quais são os pontos possíveis de avançar dentro das negociações e quais são aqueles onde poderá até tentar, mas encontrará dificuldades. “Todo mundo sabe que a ferida desse tema do financiamento ainda está exposta. Houve um resultado muito ruim em Baku, no Azerbaijão, e dar um cavalo de pau numa decisão recém-tomada é muito difícil de acontecer”, pondera. Para o coordenador do Observatório do Clima, o principal ponto da conferência em Belém deveria ser a discussão sobre petróleo e carvão. “A mudança que precisamos ver acontecer é a substituição dos combustíveis fósseis. Já existe um acordo sobre isso, firmado na COP de Dubai, e implementá-lo é o principal ponto da agenda do clima. Dois terços das emissões globais são causados por essas fontes de energia”, explica.

Apesar dos esforços governamentais, Rubens Born lembra que a atual contradição ambiental do Brasil decorre também do Executivo e é personificada em pastas controladas por partidos do Centrão, como os ministérios da Agricultura e das Minas e Energia: “Ela acontece, por exemplo, ao se licenciar pesquisa e eventual exploração de petróleo na costa brasileira ou ao se expandir o uso de fósseis.” Ele acrescenta que, apesar do desejo de captação financeira, o Plano de Transformação Ecológica do governo ainda não contém elementos robustos de transição energética. “Temos muitos desafios a enfrentar e isso, obviamente, tira parte da força que o Brasil poderia ter. O governo está muito empenhado em fazer uma COP séria, efetiva e de transição. Entretanto, essas contradições internas vão, de fato, tirar um pouco do respaldo técnico e político que o Brasil precisa ter para a COP30 ser mais ambiciosa”, prevê. •

Publicado na edição n° 1364 de CartaCapital, em 04 de junho de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Legitimidade em xeque’

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Last Update: 29/05/2025