Engenheiros legisladores e máquinas de julgar num mundo analógico

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Eclipsado e amordaçado pelo poder executivo autoritário durante a Ditadura Militar, após a redemocratização do país o Poder Judiciário lentamente se tornou um protagonista político importante. Mas isso não ocorreu sem alguns solavancos que comprometeram sua autonomia e credibilidade. Durante a operação Lava Jato, os órgãos do Sistema de Justiça se submeteram em grande medida à lógica do espetáculo midiático. Isso não apenas resultou em abusos processuais que se tornaram notórios e demoraram para ser corrigidos pelo STF, como deu origem a uma nova espécie de seletividade política na distribuição de justiça. Mas não é sobre esse assunto que pretendo dissertar.

Nos últimos 10 anos, a informatização do Judiciário se tornou total. Não é mais possível, por exemplo, sequer imaginar o cenário que existia nos Fóruns em 1990. Educados num ambiente socioeconômico dominado pelas TIC, os profissionais do Direito mais jovens não têm a menor ideia de como o sistema de justiça analógico funcionava.

Audiências presenciais registradas de maneira datilografada foram substituídas por videoconferências. Iniciais distribuídas manualmente são agora cadastradas diretamente no sistema informatizado do Tribunal. Ninguém mais precisa ir pessoalmente ao TRT protocolar Mandado de Segurança, Correção Parcial, Embargos de Declaração, Recurso de Revista ou Agravo de Instrumento. Até mesmo o levantamento de importâncias ao final do processo foi automatizado. Mas a modernidade trouxe consigo novos problemas. Um deles é a litigância predatória.

Mas antes de falar sobre esse assunto, precisamos reforçar algo que me parece importante. A distribuição de justiça não pode e não deve se submeter à lógica das TIC. O direito de petição, o devido processo legal, o julgamento do processo pelo juiz natural competente e as prerrogativas dos advogados precisam ser respeitadas pelo Poder Judiciário. Qualquer conflito entre a eficiência do sistema processual informatizado e um ou mais desses princípios constitucionais deve ser sempre resolvido contra a hegemonia das TIC.

Hannah Arendt afirma que:

“A ordem política não requer integridade moral, mas apenas cidadãos respeitadores da lei, e a Igreja é sempre uma igreja de pecadores. Essas ordens de uma determinada comunidade devem ser distinguidas da ordem moral obrigatória para todos os homens, até para todos os seres racionais. Nas palavras de Kant: ‘ O problema de organizar um Estado, por mais difícil que pareça, pode ser resolvido até para uma raça de demônios, se ao menos forem inteligentes’. Num espírito semelhante, diz-se que o demônio é um bom teólogo. Na política, como na estrutura religiosa, a obediência tem o seu lugar, e assim como essa obediência é imposta na religião institucionalizada pela ameaça de castigos futuros, a ordem legal só existe na medida em que existem sanções. O que não é punido é permitido. No entanto, se é que se pode dizer que obedeço ao imperativo categórico, isso significa que estou obedecendo à minha própria razão, e a lei que estabeleço para mim mesmo é válida para todas as criaturas racionais, todos os seres inteligíveis, não importa onde vivam. Pois se não quero contradizer a mim mesmo, ajo de tal modo que a máxima de meu ato pode se tornar uma lei universal. Sou o legislador, o pecado ou o crime já não podem ser definidos como desobediência à lei de outra pessoa, mas co contrário como a recusa a desempenhar o meu papel de legislador no mundo.” (Responsabilidade e julgamento, Hannah Arendt, Companha das Letras, São Paulo, 2004, p. 132,133)

O Judiciário não tem o poder de legislar sobre matéria processual. Vem daí, aliás, a regra que instituí como principal obrigação funcional dos juízes “Cumprir e fazer cumprir, com independência, serenidade e exatidão, as disposições legais e os atos de ofício” (art. 35, I, da Lei Orgânica da Magistratura). Essa limitação deve necessariamente orientar a administração dos serviços judiciários, quer eles sejam analógicos quer sejam informatizados.

Se levarmos em conta as palavras de Kant e de Hannah Arendt, podemos dizer que até uma raça de engenheiros de TI seria capaz de estruturar o funcionamento do Poder Judiciário informatizado. O problema é que, apesar de seres os únicos profissionais que conhecem os segredos da linguagem dos computadores, eles não podem agir como se fossem legisladores, nem tampouco criar procedimentos que contrariam as regras processuais ou substituem de maneira automatizada o julgamento dos processos pelos juízes. O universo virtual que os engenheiros de TI criam não pode funcionar apenas de acordo com as regras da informática, porque a Constituição Cidadã e a legislação infraconstitucional são imperativos categóricos aos quais as regras do processamento de dados devem se submeter.

Os TRTs têm autonomia para organizar o serviço judiciário de maneira a reprimir a litigância predatória. Mas o que está em questão aqui não é a autonomia dos Tribunais, mas a automatização de procedimentos baseados em critérios que podem suprimir tanto o direito de petição dos cidadãos quanto o devido processo legal as prerrogativas dos advogados.

A constituição proíbe expressamente a criação de tribunais de exceção (art. 5°, XXXVII, da CF/88), mas é justamente isso o que ocorrerá se alguém (ou alguma rotina computacional empoderada por IA) tiver o poder de decidir sumariamente e sem qualquer apreciação prévia pelo juiz ou instrução processual se está ou não caracterizada litigância predatória. O racionalismo dos engenheiros de TI e das rotinas que eles podem criar podem aumentar a eficiência do judiciário, mas ele não deixa de representar um risco.

Há bem pouco tempo o CNJ minimizou esse risco ao indeferir liminar no processo 0003071-97.2024.2.00.0000 porque o TRT/SP tem autonomia para organizar seus serviços judiciários.

“Os tribunais detêm autonomia constitucional para se organizarem na prestação dos serviços judiciários, o que implica na autorização constitucional para o tratamento dos seus processos e as respectivas adaptações de cada sistema de justiça.”

A autonomia do Tribunal e a racionalização da distribuição de justiça, sua total submissão à lógica dos fluxos de dados que podem ser agrupados, classificados, catalogados e analisados por algo ou por alguém com o uso de ferramentas de programação, certamente justificam tanto o conteúdo da NOTA TÉCNICA N. 7, DE 16 DE MAIO DE 2024, do TRT/SP, quanto o indeferimento da liminar requerida nos autos do processo 0003071-97.2024.2.00.0000 pelo CNJ. Todavia, tanto o Tribunal quanto o órgão de controle externo do Poder Judiciário deveriam pensar tanto nas consequências futuras de suas decisões quanto no resultado provável da automatização de rotinas procedimentais que podem impactar de maneira negativa a distribuição de justiça com evidente supressão de garantias constitucionais.

“Merleau-Ponty, muito cedo, toma suas distâncias em relação aos excessos de racionalismo. Ele faz isso na resenha, em 1936, de Ser e ter, de Gabriel Marcel: ‘Nada é mais conforme à razão que essa recusa de uma certa razão’. Ele prossegue, em 1938, por ocasião da discussão sobre a licenciatura de filosofia: ‘Se nos ativermos à razão, é talvez mais importante conhecer sua fragilidade do que acreditar no seu advento garantido de antemão nas coisas’. Quanto mais os anos passam, mais Merleau-Ponty avalia os perigos de um racionalismo absoluto, que é a forma filosófica e laicizada da religião do Pai e cujos efeitos políticos são, pelo menos, igualmente perigosos: ‘O mundo, além dos neuróticos, conta com um bom número de ‘racionalistas’ que são um perigo para a razão viva’.” (Elogio do Político – uma introdução ao século XXI, Vincent Peillon, edições Sesc, São Paulo, 2018, p. 80)

Pode a distribuição de Justiça ser automaticamente negada com base na adoção de critérios subjetivos transformados em rotinas de programação que identificam ou não demandas predatórias? O indeferimento da liminar sugere que sim, abrindo um precedente para a improcedência futura do processo 0003071-97.2024.2.00.0000. Resta saber se essa é a melhor política a ser adotada pelo Judiciário em geral e pelo TRT/SP em especial. Mas essa não é uma questão apenas técnica e jurídica. Ela é uma questão fundamentalmente filosófica.

“…Sócrates, ele [o autor refere-se aqui a Merleau-Ponty] sabia ‘que não há saber absoluto’, mas que sabia, sobretudo, que é precisamente ‘por essa lacuna que estamos abertos à verdade’. Merleau-Ponty não pretende fazer obra de descobridor, mas antes nos recorda uma sabedoria conhecida desde muito tempo, pelo menos desde os gregos: ‘não seria a condição humana de tal modo que não há solução perfeita?’ Sócrates, inocente que aceita sua condenação, não renunciado assim nem ao julgamento de sua consciência nem ao das leis, e Édipo culpado, embora inocente, já nos diziam, ambos, que uma ignorância fundamental e uma cegueira estavam presentes em nossas ações e em nossas escolhas, que a partilha do interior e do exterior, assim como a da pureza e a da impureza, era mais difícil de fazer. Tal constatação, porém, não poderia conduzir ao ceticismo ou ao relativismo, que consideraria que todas as condutas e todas políticas se equivalem. Pelo contrário, ela incita a julgar com mais firmeza, nuance e prudência.” (Elogio do Político – uma introdução ao século XXI, Vincent Peillon, edições Sesc, São Paulo, 2018, p. 85)

A proibição do juízo prévio de exceção, o devido processo legal, o julgamento do caso pelo juiz natural competente e o direito de petição outorgado aos cidadãos, bem como a natureza essencial da atividade do advogado, são todos garantidos pela Constituição Cidadã. A supressão desses princípios por uma regra legal processual (ou pela mencionada Norma Técnica) deveria ser tratada como algo excepcional, não como uma regra que pode ser automatizada. Uma ignorância fundamental e uma cegueira estavam presentes quando os juízes responderam os questionários que levaram o TRT/SP a editar o ato administrativo preservado pelo indeferimento da liminar.

Essa cegueira foi provavelmente induzida pela crença de que as TCI pode resolver antecipadamente e de maneira automatizada um problema que cada juiz tem obrigação funcional de apreciar e julgar caso a caso. Kant disse que até uma raça de demônios podem organizar o Estado. Hannah Arend e Vincent Peillon sugerem que eles (os demônios) não devem em hipótese alguma estruturar o funcionamento do espaço político entre os seres humanos. Assim como as regras estatais criadas pelos homens para os homens não devem ser demoníacas, os engenheiros de TI não pode ser transformados em legisladores. As rotinas que eles tem a capacidade técnica de criar para identificar e suprimir a litigância predatória não podem em hipótese ser automatizada e “institucionalizada pela ameaça de castigos futuros”.

Antes e chegar ao fim, precisamos voltar ao começo. A submissão da distribuição de justiça à dinâmica da mídia durante a Lava Jato foi profundamente marcada pela prolação de sentenças com centenas de páginas para justificar coisas injustificáveis. Algumas delas foram anuladas pelo STF porque o juiz era incompetente e/ou parcial. Decisões automatizadas acerca da litigância predatória podem ser proferidas de maneira eficiente e precisa por IAs como aquela que já está sendo utilizada pelo TJSP (ou pela que em breve será utilizada pelo TRT/SP quando os critérios da NOTA TÉCNICA N. 7, DE 16 DE MAIO DE 2024 forem automatizados).

“Nem sempre sentença bem fundamentada quer dizer sentença justa, e vice-versa. Às vezes, uma fundamentação negligente indica que o juiz, ao decidir, estava tão convencido de que sua conclusão fosse correta que considerava perda de tempo pôr-se a demonstrar a evidência; do mesmo modo que, outras vezes, uma fundamentação prolixa e acusada pode revelar o desejo de dissimular a si mesmo e aos outros, à força de arabescos lógicos, sua perplexidade.” (Eles os juízes, vistos por um advogado, Piero Calamandrei, Martins Fontes, São Paulo, 2015, p. 118)

Calamandrei nos fala de um tempo em que os juízes proferiam pessoalmente suas decisões. De uma época em que os membros do Judiciário não haviam sido seduzido pela visibilidade midiática. Enfim, de uma era analógica em que os engenheiros de TI ainda não podiam criar máquias inteligentes para vasculhar as bases de dados do Tribunal a fim de identificar se o advogado teria ou não ajuizado uma demanda predatória. O espetáculo degradante da Lava Jato nos ensinou que sentença justa não é aquela proferida pela mídia. Mesmo quando apoiam um juiz, os jornalistas não devem ter o poder de julgar os cidadãos. As inteligências artificiais podem ser mais eficientes do que os seres humanos, mas não me parece que elas proferirão decisões mais justas se os princípios constitucionais foram simplesmente ignorados pelos engenheiros de TI.

O mundo em que nós vivemos é analógico. Injustiças consolidadas com ajuda da imprensa ou mediante o uso de TCI nunca serão capazes de pacificar a sociedade. A eficiência é necessária à distribuição de justiça. Mas o Judiciário não pode esquecer que sua missão histórica é muito mais importante do que a redução de custos, a informatização dos procedimentos e a automatização da prolação de decisões. Se o mundo em que as pessoas comuns vivem for mais injusto do que justo elas provavelmente passarão a acreditar que a vingança privada é a única maneira racional de solucionar suas disputas.

Sócrates sabia “que não há saber absoluto” , também sabia que “por essa lacuna que estamos abertos à verdade”. Com ajuda dos engenheiros de TI, a litigância predatória pode sem dúvida alguma ser rapidamente colocada a serviço dos predadores capitalistas que lesam sistematicamente seus empregados e clientes. Os juízes trabalharão menos sem qualquer prejuízo pessoal ou salarial. Todavia, uma maior eficiência do sistema-mundo neoliberal não impedirá as pessoas lesadas de fazer algo para causar prejuízo aos seus algozes.

Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

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Última Atualização: 18/08/2024