Quem acredita na existência de uma ditadura judicial no Brasil provavelmente decepcionou-se com o depoimento de Jair Bolsonaro à Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal. O ministro Alexandre de Moraes conduziu o interrogatório com serenidade, evitou confrontar o réu diretamente e permitiu que o ex-presidente se expressasse livremente, inclusive quando se desviava do tema para enaltecer sua própria gestão, como se ainda estivesse em campanha. Bolsonaro, por sua vez, pediu desculpas a Moraes, a quem costumava chamar de “ditador”, e admitiu não haver qualquer prova de que o magistrado tivesse recebido 50 milhões de dólares para fraudar as eleições, acusação lançada por ele em um encontro ministerial de 5 de julho de 2022, no qual fez a mesma ilação contra os juízes Edson Fachin e Luís Roberto Barroso. “Não tem indício nenhum, senhor ministro. Era uma reunião para não ser gravada. Foi um desabafo, uma retórica que eu usei. Se fossem outros três ocupando (as cadeiras do Tribunal Superior Eleitoral), teria falado a mesma coisa. Então, me desculpe, não tinha intenção de acusar de qualquer desvio de conduta dos senhores.”
“Bolsonaro always chickens out”, diriam os analistas do Financial Times ao constatar a impressionante semelhança de conduta do brasileiro com o presidente dos Estados Unidos, habituado a bravatear em sua guerra comercial, mas que invariavelmente amarela. Em um momento de descontração durante o interrogatório de duas horas, o cover brasileiro chegou a perguntar a Moraes se poderia fazer uma piada. “Eu perguntaria ao meu advogado”, respondeu o magistrado. Bolsonaro ignorou o conselho: “Eu gostaria de convidá-lo a ser meu vice em 2026”. O convite foi “declinado” aos risos – que vantagem Maria leva ao ser vice de um candidato inelegível? O gesto parece ter sido calculado para aliviar a tensão e conquistar alguma simpatia, senão condescendência, dos magistrados que vão julgá-lo por chefiar uma organização criminosa, atentar contra o Estado Democrático de Direito, tentar um golpe de Estado, depredar patrimônio da União e deteriorar bem tombado – crimes cujas penas, somadas, podem chegar a 39 anos de prisão.
Bolsonaro afirmou ter cogitado uma GLO e o estado de sítio “dentro da Constituição”
O clima amistoso da audiência não apenas deixou a claque bolsonarista atônita nas redes sociais diante da amarelada do “Mito”, como também expôs Eduardo Bolsonaro na Trumplândia. O filho Zero Três, convém lembrar, “exilou-se” nos EUA para denunciar a suposta “ditadura brasileira”. Se os ruidosos atos públicos e os passeios de jet ski do pai pela orla soavam pouco compatíveis com a fantasia de perseguido político, o que dizer agora, depois de vê-lo trocando afagos com o “ditador de toga”?
Durante o depoimento, Bolsonaro fez uma confissão parcial: admitiu ter se reunido com os comandantes das Forças Armadas para discutir “possibilidades” após a derrota nas eleições de 2022. “Nós buscamos alguma alternativa na Constituição e achamos que não procedia, e foi encerrado”, despistou. Dentre as “alternativas” cogitadas estavam a realização de uma operação de Garantia da Lei e da Ordem ou até mesmo a decretação de estado de sítio, medida extrema prevista na Constituição que autoriza o presidente a suspender garantias fundamentais, como o sigilo de comunicações e a liberdade de reunião, mas que depende de aval do Congresso e de consulta aos Conselhos da República e de Defesa Nacional.

O delator Mauro Cid confirmou as acusações em juízo – Imagem: Rosinei Coutinho/STF
Segundo Bolsonaro, as reuniões com os comandantes militares só foram convocadas após o TSE multar o PL, seu partido, em 22,9 milhões de reais por litigância de má-fé, na enésima tentativa de desacreditar as urnas eletrônicas. “Essa multa nos abalou e, no nosso entendimento, se viéssemos a recorrer ou fazer uma petição, ela poderia ser agravada”, balbuciou. Foi um dos raros momentos em que Moraes contraditou o réu: Bolsonaro chegou a pedir a devolução do dinheiro, alegando que o valor fazia “muita falta ao partido”, mas o ministro lembrou que o PL apresentou um recurso à época, julgado improcedente. Ou seja, não procedia a esfarrapada justificativa usada para cogitar medidas de exceção. O magistrado ainda ofereceu a chance de o réu apresentar uma explicação mais plausível. “O senhor está dizendo que a cogitação, a conversa, o início desta questão de estado de sítio, estado de defesa, teria sido em virtude da impossibilidade de recurso eleitoral? É isso?”, perguntou Moraes. O ex-presidente confirmou: “Sim, senhor”.
Em outras passagens, o capitão sacou da algibeira outra desculpa esfarrapada para decretar a GLO: a desmobilização dos caminhoneiros que bloquearam rodovias em 26 estados e no Distrito Federal por inconformismo com o resultado das urnas. Tratava-se de uma tarefa que, segundo ele, a Polícia Rodoviária Federal não teria condições de resolver sozinha, ainda mais depois do esforço para impedir o deslocamento de eleitores de Lula no Nordeste, como anotou a Procuradoria-Geral da República na denúncia. O próprio Bolsonaro vangloriou-se, porém, de que bastou gravar um vídeo para os apoiadores nas boleias removerem os obstáculos das pistas, outra tentativa canhestra de negar as intenções golpistas do núcleo sob seu comando.
O general Heleno e seu advogado tornaram-se fortes concorrentes da dupla Debi & Lóide
Curiosamente, os caminhoneiros servem, ao mesmo tempo, como pretexto para convocar os comandantes militares ao Palácio do Alvorada e como “prova” de que não havia intenção golpista. “Se eu almejasse o caos no Brasil, era só ficar quieto.” Bolsonaro não regurgitou, porém, qualquer palavra para reconhecer a derrota nas urnas ou para desmobilizar os “malucos”, como ele próprio definiu, acampados na porta de quartéis clamando por intervenção militar. Mesmo sem ser questionado, o “chefe da quadrilha”, de acordo com a PGR, fez questão de explicar por que se recusou a entregar a faixa presidencial a Lula em 1º de janeiro de 2023. “Eu não iria me submeter à maior vaia da história do Brasil.” Singelo.
Como previsto, Bolsonaro negou ter recebido ou alterado a “minuta do golpe” preparada pelo assessor Felipe Martins, segundo versão apresentada pelo delator. O tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens da Presidência, afirmou em juízo, um dia antes do depoimento do antigo chefe, que o documento previa a anulação do resultado eleitoral e a prisão de várias autoridades do Congresso e do Supremo Tribunal Federal, lista revisada e reduzida pelo então presidente. “Somente o senhor ficaria preso”, disse Cid a Moraes. “O resto conseguiria um habeas corpus”, respondeu ironicamente o ministro.

Augusto Heleno esqueceu o roteiro ensaiado com o defensor. Braga Netto disse não se lembrar das mensagens nas quais orientou ataques aos comandantes militares nas redes – Imagem: Rosinei Coutinho/STF e José Dias/PR
“Não conversei sobre essa minuta, não. Fui bater um papo apenas”, desconversou Bolsonaro, que também negou ter recebido do general Marco Antônio Freire Gomes, então comandante do Exército, uma ameaça de prisão caso tentasse uma ruptura institucional, como afirmou em juízo o ex-chefe da Aeronáutica, Carlos de Almeida Baptista Júnior, testemunha arrolada no processo. O próprio Freire Gomes negou ter cogitado a prisão, mas confirmou ter alertado Bolsonaro de que o Exército não embarcaria em qualquer aventura que “extrapolasse sua competência constitucional”.
Quanto às recorrentes acusações de fraude eleitoral, reiteradas em atos públicos, reuniões ministeriais e no fatídico encontro com embaixadores que motivou sua condenação à inelegibilidade por oito anos, Bolsonaro admitiu “exageros” na “retórica” contra as urnas. O hábito de falar o que lhe vem à cabeça, sem se preocupar com as consequências, justificou, seria fruto de sua atuação como deputado, protegido pela imunidade parlamentar. “Talvez esse vício eu tenha trazido para o Poder Executivo.”
Se foi evasivo e teve dificuldade de mobilizar argumentos mais convincentes para justificar as reuniões conspiratórias com chefes militares, ao menos Bolsonaro não parece padecer da mesma falta de memória de seus antigos auxiliares. Braga Netto, ex-ministro da Casa Civil e vice na chapa de 2022, disse não se lembrar das mensagens em que orientou colegas de farda a intensificar os ataques nas redes sociais contra os comandantes das Forças Armadas que se recusaram a tomar parte no plano golpista. Em uma conversa interceptada pela PF, o capitão Aílton Barros perguntou ao general, em 14 de dezembro daquele ano, se poderia atirar Freire Gomes “aos leões”, e Braga Netto assentiu: “Oferece a cabeça dele. Cagão.” No dia seguinte, orientou Barros a “sentar o pau” no chefe da Aeronáutica. “Inferniza a vida dele e da família. Elogia o Garnier e fode o BJ.”

“Fux desmontou o castelo de cartas com duas perguntas”, celebrou o filho Zero Três do ex-presidente, autoexilado na Trumplândia – Imagem: Gage Skidmore e Rosinei Coutinho/STF
BJ é a abreviação de Baptista Júnior. Já Garnier se refere ao almirante Almir Garnier, comandante da Marinha, que, segundo relatou o colega da Aeronáutica à PF, teria colocado suas tropas à disposição de Bolsonaro. Agora, Braga Netto sofreu um lapso de memória em relação ao diálogo com Barros. “Eu não me lembro de ter enviado essa mensagem.” O general afirma, no entanto, lembrar com clareza do encontro em sua casa com o major Rafael de Oliveira e o tenente-coronel Hélio Ferreira Lima, integrantes das Forças Especiais do Exército. E nega ter discutido com os chamados kids pretos o plano “Punhal Verde e Amarelo”, que previa o monitoramento e o assassinato de autoridades, entre elas o presidente Lula, o vice Geraldo Alckmin e o ministro Alexandre de Moraes. Foi um encontro rápido, para tratar de amenidades, descreveu. “O assunto foi genérico. Eles não tinham intimidade para entrar em assuntos delicados comigo.” Da mesma forma, Braga Netto nega ter entregado dinheiro em uma sacola de vinho, no Palácio da Alvorada, para Mauro Cid repassar a Oliveira. Segundo o delator, o valor havia sido fornecido por empresários do agronegócio e se destinava a financiar a execução do plano golpista.
Outro com memória seletiva é Garnier. Em juízo, o almirante negou ter colocado tropas à disposição de Bolsonaro, mas disse ter uma lembrança vaga da proposta discutida na reunião de 7 de dezembro de 2022. “O que eu me lembro é que foram apresentadas considerações que deixaram uma dificuldade na condução do País. Afinal, o candidato derrotado Jair Messias Bolsonaro ainda era o presidente, e preocupava, a ele e aos demais ministros, inclusive o da Defesa, que pudesse descambar em algo não muito agradável.”
Anderson Torres, ex-ministro da Justiça e secretário de Segurança Pública do Distrito Federal à época dos atos golpistas que devastaram Brasília, disse não se lembrar da minuta apreendida em sua casa pela Polícia Federal. Desconfia que o documento tenha ido parar ali por uma “fatalidade”, misturado a outros papéis que circulavam misteriosamente por seu gabinete. Empenhado em esconder a tornozeleira eletrônica com as próprias meias, o ex-ministro parecia constrangido com a indigente redação da peça, um decreto de Estado de Defesa para intervenção no âmbito do TSE, que ele próprio apelidou de “minuta do Google”. Ao tomar conhecimento da prisão, durante um passeio pela Disney, afirmou ter ficado tão “desorientado” que acabou perdendo o celular.
Alexandre Ramagem gostava de escrever cartas para Bolsonaro, mas preferia guardá-las para si
Augusto Heleno, ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, manteve a “fama de mau”. Recusou-se a responder às perguntas de Moraes, mas participou de uma espécie de esquete de humor com o próprio advogado, Matheus Milanez, celebridade nas redes sociais depois de se queixar do horário das audiências, que o impedia de comer nos horários apropriados. De todos os réus do “núcleo crucial” da trama golpista, Heleno foi o único a exercer o direito de permanecer em silêncio no interrogatório. Mas não escapou do vexame. “O senhor orientou a Abin para que a agência produzisse relatórios e documentos com informações falsas sobre a eleição de 2022?”, perguntou Milanez. “De maneira nenhuma. Não havia clima”, respondeu o réu. “A pergunta é só ‘sim’ ou ‘não’”, advertiu o advogado. “Porra, desculpa”, reagiu Heleno, arrancando gargalhadas até mesmo de Moraes. “Não fui eu, general Heleno. Que fique nos anais aqui do Supremo: foi o seu advogado”.
A turma deveria mirar-se no exemplo de Alexandre Ramagem, ex-chefe da Agência Brasileira de Inteligência. Para não cair nas armadilhas do esquecimento, ele guardou no computador funcional até os recados que jamais teria chegado a enviar a Bolsonaro. “Por tudo que tenho pesquisado, mantenho total certeza de que houve fraude nas eleições de 2018, com vitória do Sr. no primeiro turno. Todavia, ocorrida na alteração de votos. O argumento na anulação de votos não teria esse alcance todo”, registrou em um arquivo do Word. “O senhor escrevia cartas ao presidente e não enviava?”, insistiu Moraes. “Eu escrevia textos privados que me concatenavam a ideia para, se possível, em algum momento, se ter algum debate”, respondeu Ramagem. O detalhismo do delegado não passou despercebido. Apesar de guardar para si as missivas, Ramagem não se esquecia de escrever “bom dia, presidente” ou “boa sorte, presidente”. Em juízo, o deputado federal negou ter usado a estrutura da Abin para comprovar as infundadas alegações de fraude no sistema eleitoral.
Na tentativa de expor contradições no depoimento do delator, a defesa de Bolsonaro quase arrastou alguns aliados para a fogueira. O advogado Celso Villardi pediu autorização a Moraes para reproduzir um áudio extraído do celular de Mauro Cid, incluído nos autos do processo. Na conversa com um general, Cid relata que o presidente parecia inclinado a desistir da tentativa de golpe, mas era incentivado por aliados a continuar contestando o processo eleitoral conduzido pelo TSE. O militar menciona então um grupo de empresários – Luciano Hang (Lojas Havan), Meyer Nigri (Tecnisa), Afrânio Barreira (Coco Bambu) e “o cara da Centauro”, em provável referência a Sebastião Bonfim – que teria pressionado Bolsonaro a exigir do Ministério da Defesa um relatório “mais duro, contundente, para virar o jogo”. Moraes, irônico, perguntou se o defensor estava propondo um “aditamento da denúncia”, para inclusão de novos investigados. Villardi desconversou. Os empresários negam qualquer iniciativa antidemocrática.

A defesa de Bolsonaro arrastou Luciano Hang (Havan), Meyer Nigri (Tecnisa), Afrânio Barreira (Coco Bambu) e Sebastião Bonfim (Centauro) para o fogo – Imagem: Vipcomm, Unifort, Murillo Tobias e Alan Santos/PR
Curiosamente, as perguntas que deixaram o delator mais desconcertado não partiram da defesa, mas do ministro Luiz Fux, único integrante do STF a acompanhar presencialmente os depoimentos conduzidos por Moraes, relator dos processos sobre a tentativa de golpe. Fux quis saber quem, no governo, teve contato direto com os acampados diante dos quartéis. “O miolo da Presidência nunca manteve contato com nenhuma liderança, nenhum financiador. A gente sabia o que estava acontecendo pelas redes sociais”, respondeu o tenente-coronel. Em outra ocasião, o ministro perguntou se as minutas golpistas chegaram a ser assinadas. “Não, senhor. Em nenhum momento foi assinado. Inclusive, era a grande preocupação do comandante do Exército que o presidente assinasse alguma coisa sem consultar e sem falar com ele antes.”
As intervenções do juiz foram celebradas por Eduardo Bolsonaro. “Fux desmontou o castelo de areia com duas perguntas”, comemorou Zero Três, em vídeo divulgado nas redes sociais. No dia seguinte, o próprio ex-presidente reforçou esse ponto em seu depoimento: “Até vi o ministro Fux questionando o coronel Cid aqui se foi assinado ou não”, disse Bolsonaro. “Sequer pensamos em fazer algo ao arrepio da nossa Constituição.”
Fux, que criticou publicamente o “excesso de depoimentos” prestados por Cid à Polícia Federal, nove, no total, mais diligente que os advogados de defesa, voltou a perguntar a outros acusados sobre detalhes formais, como a convocação dos Conselhos da República e de Defesa Nacional, uma das etapas para a decretação de um estado de sítio, ou a existência de assinaturas em documentos mencionados durante os interrogatórios. A pergunta mais espantosa veio na oitiva de Braga Netto. “General, alguém assinou esse plano Punhal Verde e Amarelo?” O réu repetiu que desconhecia sua existência, mas, a julgar pela fixação do ministro com rubricas, talvez seja o caso de a PF fazer uma varredura nos cartórios. Dada a obsessão dos golpistas em documentar cada passo da intentona, não surpreenderia se alguém tivesse tido o cuidado de reconhecer firma na trama para assassinar autoridades.
Espera-se que o apego a formalidades não prejudique o juízo dos ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal. Como o jurista Pedro Serrano tem repetido nas páginas de CartaCapital, o crime de golpe de Estado não exige tanques nas ruas nem a consumação do rompimento institucional. “Não estamos diante de meros atos preparatórios, mas de uma execução real, apenas interrompida por questões logísticas. A execução foi iniciada, mas interrompida por razões alheias à vontade dos envolvidos. No caso de golpe de Estado, o crime inicia-se pelo planejamento.”
Como os réus produziram fartas provas contra si mesmos, os lapsos, negativas e rodeios só tiveram o efeito de demonstrar as limitações intelectuais, morais e cognitivas do núcleo crucial do golpe. Os aliados de Bolsonaro esperam uma condenação até outubro. Os donos do dinheiro que sonham – e trabalham – por uma reorganização da extrema-direita, sem o ex-presidente para atrapalhar, não só esperam. Também torcem. •
Publicado na edição n° 1366 de CartaCapital, em 18 de junho de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Lapsos de memória’