Os tumultos violentos que eclodiram em pelo menos 21 cidades britânicas mergulharam o Reino Unido em uma crise nacional. Ainda é cedo para avaliar o impacto das últimas duas semanas, incluindo as ramificações sociais e econômicas mais amplas. Incêndios criminosos em hotéis que abrigam requerentes de asilo; ataques a casas, carros, empresas e mesquitas; agressões a cidadãos comuns e à polícia; escritórios de advocacia e teatros forçados a fechar; depredação de túmulos muçulmanos; e danos à reputação internacional do país são algumas das consequências. Tudo isso enquanto as famílias de Bebe, Alice e Elsie, mortalmente feridas a faca no ataque em Southport, sofrem uma dor insuportável.

Essa destruição insensata e o total desrespeito às comunidades é hedionda e um ataque ao país e a uma sociedade livre. Embora existam problemas, tanto reais quanto aparentes, não pode haver qualquer justificativa para tal comportamento.

O debate sobre as causas dos tumultos persistirá, e com razão, mas um fator que não pode ser ignorado é o papel dos líderes de organizações de extrema-direita que, há anos, exploram cinicamente as tensões e os incidentes. Com a disseminação de desinformação e teorias da conspiração, esses agitadores têm espalhado de modo persistente propaganda extremista, na tentativa de radicalizar e recrutar pessoas para sua causa perigosa, com a esperança de popularizar sua ideologia e mudar a “janela de Overton” – o leque de políticas que as pessoas se dispõem a aceitar em determinado momento. Embora cuidadosos para não infringir as leis antiterrorismo, eles têm estado na vanguarda da incitação ao ódio contra minorias britânicas, incluindo muçulmanos e judeus, mas também requerentes de asilo e refugiados.

Após as violentas manifestações da extrema-direita contra imigrantes, atos antirracistas se multiplicaram pelo Reino Unido

Isso foi evidenciado em meus relatórios oficiais. O extremismo evoluiu substancialmente na última década. Os avanços tecnológicos, a falta de regulamentação das plataformas online, o uso de táticas sofisticadas e a ausência de legislação que impeça sua atividade perigosa são algumas das razões. Os sinais de alerta estavam piscando há algum tempo e, ainda assim, o último governo não construiu a abordagem estratégica necessária para evitar tais ameaças. É imperativo que o novo governo retifique essas falhas políticas crônicas.

Isso inclui publicar uma muito necessária estratégia de combate ao extremismo; atualizar a estratégia contra os crimes de ódio, atrasada desde 2020; abordar lacunas na legislação e a falta de infraestrutura operacional, conforme descrito em meu relatório de 2021, ­Operating with Impunity ­(Atuando com Impunidade), coescrito com Mark Rowley; garantir que a Lei de Segurança Online aborde a propaganda extremista, parte da qual está sendo vista milhões de vezes porque é classificada como “legal, mas prejudicial”; publicar um código de práticas e um sistema de classificação para teorias de conspiração extremistas e desinformação, para ajudar a orientar a Ofcom (agência reguladora das indústrias de comunicações) e as plataformas online. Essas medidas podem ser implementadas ao mesmo tempo que protegem a liberdade de expressão legal.

Minha análise deste ano sobre ameaças à coesão social e à resiliência democrática destacou a ausência de uma estratégia eficaz de coesão social, ferramenta vital para identificar e prevenir riscos sociais. Também há lacunas na capacidade analítica do governo britânico: não temos uma estrutura abrangente para avaliar o estado de coesão em todo o país. Por exemplo, quais são os fatores de risco que tornam uma área mais suscetível ao extremismo e os fatores de proteção que apoiam a resiliência da comunidade ao extremismo?

Terrorismo interno. Elsie Stancombe, de 7 anos, Bebe King, de 6, e Alice Aguiar, de 9, foram mortas em um ataque a faca – Imagem: Redes Sociais

A literatura acadêmica demonstra que, onde a coesão social é baixa, grupos decepcionados podem adotar teorias de desinformação e conspiração. O apoio e o engajamento em teorias conspiratórias têm sido associados à falta de confiança no sistema político e ao desligamento da democracia, e são frequentemente associados a segmentos da sociedade que se sentem impotentes e enganados. Dados de séries temporais mostram que, nas últimas quatro décadas, o Reino Unido experimentou uma confiança cada vez menor no governo e no Parlamento, nos partidos políticos e na imprensa – um clima que pode oferecer terreno fértil para extremistas. Portanto, o desafio enfrentado pelo novo governo trabalhista não pode ser ignorado. Esses tumultos terríveis e a confiança desgastada em nosso modelo democrático mostram que ignorar áreas de políticas de longo prazo, como a coesão social, tornou-se insustentável.

É preciso adotar uma abordagem coerente contra todas as formas de extremismo

O governo britânico pode começar considerando as recomendações em minhas resenhas. Ele também deve empenhar-se em uma análise dos tumultos para ajudar a entender suas causas e fornecer respostas para perguntas como por que algumas cidades não explodiram em tumultos ou violência, enquanto outras o fizeram?

A falta de engajamento significativo com comunidades brancas descontentes e carentes deveria ter sido resolvida há muito tempo. O governo deve promover uma narrativa factual da imigração e abordar preocupações reais sobre o impacto que altos níveis de imigração estão tendo nos recursos locais. Essa foi uma questão que todas as autoridades locais com que falei compartilharam comigo.

Da mesma forma, devemos condenar a ideia de que os tumultos foram causados por uma “falha de integração e multiculturalismo”. Isso alimenta a desilusão entre algumas minorias étnicas que, embora vivendo com medo, também tiveram de suportar essa narrativa errônea e intolerante que os culpava pelos tumultos. Enquanto alguns contramanifestantes muçulmanos se envolveram em crimes e foram condenados com razão, foram perpetradores brancos que instigaram os tumultos, com seus nomes e rostos publicados após a sentença.

Imigrantes. O ex-premier Rishi Sunak deu continuidade à politica de deportar solicitantes de refúgio para Ruanda – Imagem: Simon Walker/HM Treasury e Arquivo/AFP

Finalmente, nossos políticos devem adotar uma abordagem coerente para todas as formas de extremismo. Ao longo de minha carreira, vi alguns políticos trabalhistas dispostos a abordar o extremismo de direita, mas ignorarem a amea­ça do extremismo islâmico. Por outro lado, também testemunhei alguns políticos conservadores falando apenas sobre o extremismo islâmico, fechando os olhos para o extremismo de direita.

Essa incoerência nada faz para preservar a coesão social ou combater o extremismo e, como mostra uma pesquisa recente do YouGov, 52% e 47% dos britânicos veem os extremistas islâmicos e os extremistas de direita, respectivamente, como “uma grande ameaça”. É fácil tomar como garantida, no Reino Unido, uma sociedade plural e coesa. Ameaças antigas e novas continuam a minar a nossa capacidade de viver bem juntos, mas não temos estratégias necessárias para evitar isso. O problema deve ser resolvido agora. •

Categorizado em:

Governo Lula,

Última Atualização: 15/08/2024