Uma em cada dez mulheres em idade reprodutiva sofre de endometriose – quadro no qual o tecido que reveste o interior do útero cresce fora de seu local normal. A doença aparece em trompas, ovários, na superfície do intestino ou em qualquer órgão abdominal, causando dor importante e podendo afetar a fertilidade.

Não obstante este quadro clínico, um estudo publicado há poucos dias na revista Jama por cientistas da Universidade de Utah, nos Estados Unidos, liderados pelo doutor M. Barnard, identificou o aumento (quase o dobro) do risco de as portadoras de endometriose desenvolverem câncer de ovário.

Para repercutir o estudo, conversei com o doutor Maurício Abrão, professor-associado e coordenador do Setor de Endometriose do Departamento de Obstetrícia e Ginecologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, e presidente da American Association of Gynecologic Laparoscopy. Abrão é considerado um dos maiores especialistas em endometriose do mundo e tem mais de 200 artigos científicos e cinco livros publicados.

CartaCapital: O que o senhor achou da qualidade do estudo?
Mauricio Abrão: O estudo é de alta qualidade, utilizando uma coorte (grupo grande de pacientes) baseada em dados populacionais e um elevado número de participantes. As análises estatísticas são robustas, ajustando-se a diversos fatores sociodemográficos e históricos reprodutivos.

CC: Na sua opinião, o estudo deixou dúvidas ou apresentou limitações?
MA: Embora o estudo seja bem conduzido, potenciais limitações incluem a dependência de registros médicos eletrônicos para identificação de casos e a possível falta de generalização para populações fora de Utah.

CC: Qual é a sua experiência sobre o risco de câncer de ovário em pacientes com endometriose, brasileiras ou não?
MA: Pacientes com endometriose, especialmente aquelas com subtipos especiais, como endometriomas ou endometriose infiltrativa profunda, têm risco aumentado de câncer de ovário. Isso é consistente em estudos e meta-análises que precederam a publicação atual.

CC: Esta subtipagem patológica da endometriose é rotineira/possível no Brasil?
MA: Ela pode ser rotineira nos serviços de patologia em muitos centros especializados, mas não está amplamente disponível em todos os contextos clínicos dos hospitais do País.

CC: A partir deste estudo, o que mudaria, na sua prática, na discussão com as pacientes?
MA: Reforçaria a importância de discutir o risco de câncer de ovário com pacientes com endometriose, especialmente aquelas com endometriomas ou endometriose profunda, e consideraria encaminhamentos para aconselhamento genético e monitoramento mais rigoroso.

CC: Como mudaria a abordagem para diagnóstico precoce de câncer de ovário nessas pacientes?
MA: Implementaria um rastreamento mais intensivo e vigilância regular para pacientes com endometriose de alto risco, usando métodos de imagem, como o ultrassom para mapeamento da endometriose desenvolvido pelo nosso grupo ou, eventualmente, ressonância magnética com protocolo para endometriose e marcadores tumorais específicos. Também devemos levar em consideração o antecedente familiar de câncer de ovário, assim como o resultado do aconselhamento genético. Existem várias publicações que demonstram a associação entre endometriose e câncer, em particular o de ovário. No entanto, é importante destacar que, quando o câncer de ovário se manifesta em pacientes com endometriose, há uma tendência de ser de baixo grau e apresentar melhor prognóstico. Essa característica pode influenciar positivamente o tratamento e o desfecho clínico, reforçando a importância de um acompanhamento especializado e contínuo após o tratamento.

Publicado na edição n° 1321 de CartaCapital, em 31 de julho de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Associação comprovada’

Categorizado em:

Governo Lula,

Última Atualização: 25/07/2024