Kamala Harris e a esquerda que se esquece da luta de classes

por Luís Carlos Silva

Nos últimos dias, os noticiários internacionais têm apresentado praticamente uma única pauta: a desistência do presidente estadunidense Joe Biden em disputar a reeleição e a possível indicação de sua vice, Kamala Harris, para encabeçar a chapa democrata na disputa pela Casa Branca contra o republicano Donald Trump.

Nos discursos da mídia hegemônica, a notícia, que recebeu uma cobertura superdimensionada, foi saudada com grande entusiasmo. Nesse sentido, entrou em cena o mecanismo de manipulação conhecido como “personalização”, em que personalidades substituem projetos políticos. Apesar de (aparentemente) facilitar o entendimento do público, este tipo de manobra editorial mais obscurece do que propriamente explica como funciona um determinado contexto.

Assim, na lógica midiática, a provável entrada de Kamala no páreo traz a seguinte disputa eleitoral: de um lado “um homem branco e supremacista”; do outro lado “uma mulher negra e filha de imigrantes”. Ao demonstrar apoio a candidata democrata, a grande imprensa, cinicamente, passa a impressão de ser favorável à diversidade e contra a onda de extrema direita que assola o planeta. Mas, como diz a expressão popular, o golpe está aí, cai quem quer!

Qualquer análise sobre a política dos Estados Unidos deve levar em consideração que não há diferenças significativas entre Democratas e Republicanos. É o básico. Ambos os partidos representam os interesses do grande capital. Também apoiam incondicionalmente Israel no genocídio do povo palestino. Ideologicamente, estão à direita do espectro político. Não há um “menos pior”.

O que há de se ressaltar é o fato de os Democratas representarem uma ala que defende uma política externa mais agressiva e maior abertura econômica, enquanto os Republicanos defendem um maior isolacionismo estadunidense e políticas protecionistas.

Como a grande imprensa brasileira está comprometida com a agenda neoliberal mais agressiva, logo apoia o Partido Democrata. A representação midiática negativa de Donald Trump explica-se por razões políticas e econômicas; e não por sua personalidade controversa.

Diante dessa realidade, é compreensível que os articulistas da grande imprensa se mostrem entusiasmados com a provável candidatura Kamala Harris. Estão defendendo os interesses de seus patrões. Por outro lado, não deixa de ser inusitado constatar a euforia de parte da esquerda brasileira com a possível indicação de Kamala para concorrer à Casa Branca.  No entanto, apesar de vergonhoso, este tipo de posicionamento pode ser explicado.

Nos últimos anos, sem uma agenda política própria, boa parte da esquerda brasileira, sobretudo no que diz respeito a questões internacionais, tem ficado a reboque dos posicionamentos da grande mídia. Consequentemente, tomados pelo Cavalo de Troia identitário, esses setores acreditam que, se a maior potência imperialista for comandada por uma mulher negra e filha de imigrantes, logo adotará uma postura mais humanizada frente ao mundo. Os mais ingênuos, inclusive, acreditam que Kamala vá combater a chamada “Internacional Fascista”.

Para ficarmos em um exemplo emblemático, Barack Obama também era negro e promoveu uma política externa mais agressiva do que a de seu sucessor, o “branco” Donald Trump (evidentemente, isso não significa que o Republicano seja “menos pior”, haja vista que a simples existência dos Estados Unidos já é um fator negativo para os povos oprimidos do planeta).

Na política brasileira, Eduardo Leite, Fernando Holiday e Carla Zambelli também pertencem a minorias sociais. Tais “identidades”, evidentemente, não os impedem de atuar contra os interesses da maioria da população e a favor do grande capital.

Para finalizar este texto, lembremos que, na década de 1970, o cineasta Píer Paolo Pasolini teria profetizado: “a burguesia ainda criará um fascismo, para inventar um antifascismo que lhe permita manter a hegemonia das ideias liberais e domesticar a esquerda”.

Trazendo estas palavras para o presente contexto, podemos dizer que o “espantalho” Trump é o fascismo criado pela burguesia, Kamala é o “antifascismo burguês” e os setores identitários, a “esquerda domesticada”. 

Portanto, com uma esquerda dessas, totalmente adaptada e a serviço do status quo, os grandes capitalistas podem dormir tranquilos.

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Luís Carlos Silva é jornalista e doutorando em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo

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Última Atualização: 26/07/2024