Um tribunal de Frankfurt, na Alemanha, condenou na segunda-feira 16 à prisão perpétua um cidadão sírio de 40 anos por crimes contra a humanidade. A sentença faz história por mostrar como funciona a “jurisdição universal”, princípio jurídico segundo o qual alguns crimes são tão graves que atentam contra a própria noção de humanidade e, como tais, podem ser julgados por qualquer um, em qualquer lugar do mundo e a qualquer tempo.

O sírio Alaa Moussa torturou 19 prisioneiros e matou ao menos dois no perío­do em que foi médico residente em dois hospitais militares sírios, na cidade de Homs e nos arredores da capital, Damasco. Em um de seus crimes mais graves, embebeu em álcool o pênis de um jovem de 15 anos e ateou fogo. Em outras vítimas, injetava substâncias intravenosas.

Assim como no Brasil, os médicos na Síria precisam passar por um período de residência, semelhante a um estágio, antes de se formar. Moussa fez dos hospitais militares sírios sua escola no perío­do final de formação, e usou dissidentes políticos do regime do então presidente Bashar Al-Assad como cobaias de suas técnicas de tortura, abusos sexuais e outros suplícios citados na ação.

Os crimes ocorreram em 2011 e 2012. À época, a Síria era palco de grandes manifestações de rua contra Assad, líder que estava no poder havia 11 anos, depois de ter sucedido o próprio pai, ­Hafez Al-Assad, que governara desde 1971. As marchas contra o governo seguiram o embalo da chamada Primavera Árabe, que chacoalhou vários outros países da região, com demandas por reformas políticas e econômicas, e levou à queda de governos em países como o Egito e a Tunísia. Na Síria, as manifestações foram duramente reprimidas pelas forças leais­ a Assad. A repressão empurrou uma parte da oposição para o exílio e a outra para as fileiras de grupos cada vez mais organizados, armados e violentos, que passaram a disputar o poder por meio de uma guerra civil. Com o passar dos anos, potências estrangeiras – incluindo Rússia, Turquia, EUA e os países europeus – entraram diretamente na guerra, até a derrubada de Assad no ano passado, que fugiu para Moscou.

Moussa recebia os manifestantes feridos nos hospitais militares em que era residente. Os detidos eram em sua maioria jovens, capturados em distúrbios de rua. Em vez de tratar os pacientes, ele orientava, no entanto, agentes do governo sírio durante as sessões de espancamento ou agregava novos suplícios, por conta própria. “Os médicos do regime sírio também praticavam tortura”, afirmou o jornalista sírio Shiar Khalil em entrevista concedida, em fevereiro de 2022, à revista Al Majalla, editada em árabe e inglês, em Londres, desde 1980. O jornalista, preso político no início dos protestos, contou que Moussa “matava e torturava detidos em vez de tratá-los”.

Como muitos sírios, o médico torturador deixou seu país de origem e migrou para a Alemanha em 2015, ano em que a maior economia europeia, sob o governo da então chanceler Angela Merkel, acolheu quase 500 mil refugiados que tentavam escapar da guerra civil iniciada quatro anos antes. No meio da crise migratória, os alemães afrouxaram as exigências de entrada e, naquele ano, lidaram com o maior fluxo de estrangeiros em sua história. Moussa ingressou na Alemanha no meio dessa multidão, e passou a viver como se fosse uma das milhares de vítimas da perseguição do regime para o qual ele mesmo havia trabalhado. Rapidamente, conseguiu ser aceito como cirurgião ortopédico em hospitais alemães, onde buscou trabalhar despercebido. Mas começou a ser reconhecido por outros cidadãos sírios, alguns dos quais tinham passado pelos hospitais militares em que seu algoz havia atuado.

Muitas das testemunhas tinham medo de agir sozinhas contra o médico, pois pensavam correr o risco de ser alvo de represálias de outros ex-agentes do regime que também haviam emigrado para a Alemanha. A ação da ONG Centro Sírio para Estudos e Pesquisas Legais tornou possível, no entanto, juntar os testemunhos e mover uma ação legal na Justiça alemã por crimes ocorridos na Síria.

Os magistrados da Alemanha se escoram na “jurisdição universal”

O processo arrastou-se por quase quatro anos, ao longo dos quais foram realizadas 186 sessões, em que 50 testemunhas foram ouvidas. Ao longo de todo o julgamento, as testemunhas acreditavam estar sob observação de compatriotas simpáticos a Assad, que repassavam informações a Damasco. O temor dos depoentes era de que seus parentes que ainda viviam na Síria sofressem represálias por participarem da acusação contra o médico. “Os depoimentos das testemunhas e dos especialistas traçaram um quadro abrangente do papel dos hospitais militares sírios no sistema de tortura do regime de Assad, nos seus ataques sistemáticos a civis e na repressão violenta dos protestos em Homs”, anotou a ONG em comunicado publicado logo após a sentença.

Esse não é o primeiro caso no qual a Justiça alemã chama para si a responsabilidade com base no princípio da jurisdição universal, ferramenta que começou a ser conhecida popularmente depois de o juiz espanhol Baltazar Garzón processar o ex-ditador chileno Augusto Pinochet por essa mesma via do direito internacional, quando o general buscou tratamento médico numa clínica de Londres, em 1998.

Antes de Moussa, a Alemanha condenou à prisão perpétua, em janeiro de 2022, outro agente do regime sírio: Anwar Raslan, acusado de ter matado 27 prisioneiros e ter torturado outros 4 mil, na prisão de Al-Khatib, em 2011 e 2012.

Os casos mostram que o instituto da jurisdição universal pode representar uma via mais ágil e desimpedida, usada por procuradores e advogados militantes das causas de direitos humanos para punir os culpados por crimes de guerra e crimes contra a humanidade, mesmo nas situações em que os Estados agem mais lentamente ou com maior leniência, por interesses políticos. Pinochet nunca foi para trás das grades, graças a arranjos feitos entre britânicos e chilenos. Mas os casos julgados na Alemanha agora representam um ganho de terreno na disputa por responsabilização internacional dos culpados. •

Publicado na edição n° 1367 de CartaCapital, em 25 de junho de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Justiça sem fronteira

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Last Update: 18/06/2025