“Resistir muito, obedecer pouco”, escreveu Walt Whitman, e Charlie, o protagonista de “A Baleia”, encarna essa resistência silenciosa contra um sistema que o abandona. No Teatro Adolpho Bloch, José de Abreu retorna aos palcos após 12 anos para interpretar um professor recluso de quase 300 quilos que enfrenta não apenas o isolamento emocional, mas também a cruel realidade de um país sem sistema de saúde público.
A peça de Samuel D. Hunter, que rendeu o Oscar a Brendan Fraser no cinema, ganha dimensão brasileira pelas mãos de Luís Artur Nunes. Como Melville escreveu sobre sua baleia branca, esta também é uma história sobre obsessões e redenção, mas principalmente sobre amor – o amor perdido pelo companheiro que se suicidou sob o peso da intolerância religiosa, e o amor desesperado pela filha que Charlie tenta reconquistar.
Charlie vive múltiplos dilemas que expõem as entranhas de sociedades conservadoras. Primeiro, o trauma de ter perdido seu companheiro, vítima da intolerância de igrejas evangélicas – uma realidade tão presente nos Estados Unidos quanto no Brasil atual. Segundo, a escolha impossível entre gastar suas economias com tratamento médico ou preservá-las como herança para a filha. Essa tensão revela como a ausência de saúde pública transforma a sobrevivência em luxo, mesmo no país mais rico do mundo.
A transformação física de José de Abreu impressiona: próteses, figurinos climatizados, camadas de neoprene criam um corpo que é prisão e metáfora. Mas é na alma do personagem que reside o verdadeiro milagre teatral. Charlie carrega múltiplas culpas – abandonou a família para viver sua homossexualidade, perdeu o companheiro para o preconceito religioso, isolou-se do mundo. Sua obesidade mórbida é consequência de uma dor que devora por dentro.
José de Abreu navega por essas águas emocionais com maestria impressionante. Cada respiração ofegante, cada movimento laborioso constrói um retrato humano de honestidade brutal, onde a vulnerabilidade física espelha a fragilidade de sistemas sociais excludentes.
O elenco de apoio – Luisa Thiré, Gabriela Freire, Eduardo Speroni e Alice Borges – complementa a performance central. A direção de Nunes é precisa, evitando melodramas fáceis. O cenário claustrofóbico de Bia Junqueira espelha tanto o estado interior do protagonista quanto sua condição socioeconômica.
A peça aborda temas universais: homofobia, gordofobia, abandono familiar, mas também denuncia como a intolerância religiosa e a mercantilização da saúde destroem vidas. Para o público brasileiro, ressoa especialmente a crítica ao fundamentalismo evangélico e nos faz refletir sobre a importância do SUS.
Como escreveu Carlos Drummond de Andrade, “Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo”. Charlie arrasta um corpo com sobrepeso e emoções intensas que o esmagam, mas que ao mesmo tempo fazem dele um símbolo da dor, do desespero e das esperanças de todos os seres humanos deste planeta.
“A Baleia” segue em cartaz até 26 de julho, no teatro Adolpho Bloch, no Rio de Janeiro.