POR THIAGO SUMAN
O DCMTV entrevistou Martha Baptista, jornalista que tomou depoimento do médico Amílcar Lobo, testemunha dos últimos suspiros de Rubens Paiva nos porões da ditadura.
O Brasil tem se reencontrado com seu passado de ditadura militar em 2024, seja pela sanha golpista de Bolsonaro e dos oficiais do exército que planejaram um golpe de Estado, seja pela memória da prisão e morte do Deputado Rubens Paiva, resgatada pelo filme “Ainda Estou aqui”, de Walter Salles.
Paiva, torturado e assassinado nas dependências do quartel da polícia do exército do Rio de Janeiro em 1971, teve a conclusão de sua história, por décadas, indefinida por uma enorme reticência que eventualmente ensaiava de transformar em ponto final.
Porém, o desfecho só veio em 1996, após incessante luta da viúva, Eunice Paiva, sua família e a Comissão Nacional da Verdade. Através de tais esforços, se conseguiu o reconhecimento do Estado brasileiro a partir do atestado de óbito, admitindo, portanto, que Rubens Paiva fora vítima da ditadura militar.
Um dos momentos mais impactantes e reveladores do “Caso Rubens Paiva” foi a confissão do tenente médico Amílcar Lobo, conhecido como “Dr. Carneiro”. Enquanto testemunha, Lobo adimtiu que havia visto Paiva já moribundo — mas ainda vivo — na Rua Barão de Mesquita, na grande Tijuca, no Rio de Janeiro. O médico-militar do DOI-CODI examinava os presos durante as sessões de tortura para dizer se aguentavam apanhar mais.
Lobo confessou esse encontro com o deputado em uma entrevista à revista Veja, em 1986, quinze anos após o desaparecimento de Rubens Paiva. Segundo ele, o “gatilho” para abrir essa caixa de pandora foi a reabertura da investigação da morte do deputado.
A repórter que tomou o depoimento de Amílcar e produziu a matéria, Martha Baptista, atuou em diversos jornais e revistas cariocas até 1988, quando se mudou para Cuiabá. Martha, peça importante desse grande quebra-cabeças da história ditatorial do Brasil, se afastou desse enredo. A entrevistada ainda comenta que pessoas de sua família nem sabem que foi ela a dar voz ao homem que viu Paiva nos últimos instantes de vida.
Martha atuava na sucursal da Veja no Rio de Janeiro quando, no fim de tarde de uma sexta-feira de setembro de 1986, já em final de expediente, o telefone tocou. Diante da indiferença de todos os colegas em atender a chamada, ela então se prontificou. Esse era o telefonema que mudaria tudo: o interlocutor do outro lado da linha alegava ter algo impactante para revelar, mas não se identificou de imediato.
Com paciência e jogo de cintura, Martha o convenceu a revelar sua identidade: Amílcar Lobo. Logo disse, sem delongas, que explanaria algo sobre Rubens Paiva. Evocando sua boa memória jornalística, Martha lembrou de Lobo por conta de uma matéria que a Veja havia feito cinco anos antes sobre a ida de um grupo de ex-presos políticos até o consultório do psiquiatra para cobrá-lo sobre sua participação junto aos militares ligados à ditadura. E isso a fez ganhar a confiança da fonte.
Martha recorreu rapidamente ao chefe, José Carlos de Andrade, e falou que Amílcar pretendia revelar uma “bomba” sobre Paiva. Andrade então contatou a Veja em São Paulo e retornou com o diretor adjunto de redação, Elio Gaspari, por telefone. A orientação era clara: Martha devia ir, junto dela um fotógrafo, imediatamente ao encontro do médico para tomar seu testemunho. “Você deve acolhê-lo, ouvi-lo, não o julgar e não demonstrar espanto”, disse Elio.
Martha e o fotógrafo, Antônio Ribeiro, partiram de Botafogo, deixando uma redação inteira em alvoroço. Rumo à Tijuca, a dupla se encaminhou ao apartamento de Lobo, onde o entrevistado e sua esposa os aguardavam. A conversa durou em torno de uma hora.
Lobo, em seu depoimento a Martha, relatou que em 1971 foi chamado às pressas, por volta das 2 horas da manhã, para atender uma ocorrência no quartel onde prestava serviço diário na escala. Chegando lá, continua, o médico diz que encontrou um preso na última cela ao lado direito, no fundo do corredor do segundo andar: “Ele estava deitado, nu, com os olhos fechados e era uma equimose só, roxo do cabelo até a ponta dos pés”, revelou Lobo. O confessor explicou que o protocolo era o de nunca saber o nome dos presos, mas quando se aproximou deste, o prisioneiro balbuciou duas palavras: Rubens Paiva.
O doutor desconfiou que Paiva tivesse uma ruptura de algum órgão interno, como baço ou fígado, o que provocaria hemorragia severa. Por isso, o médico comenta que se dirigiu ao major, que lhe acompanhou na visita, orientando que o detido fosse levado imediatamente ao hospital porque estaria prestes a morrer. Porém, o oficial achou mais prudente mantê-lo nessa condição e dispensou o serviço médico de Lobo. No dia seguinte, quando retornou ao quartel da PE, o doutor Amilcar Lobo foi informado de que o preso havia morrido.
Na sequência da entrevista, Amílcar disse que tentou inúmeras vezes pedir baixa do serviço militar. No entanto, os superiores dificultaram de todas as formas até que seu tempo de serviço acabasse. A justificativa de Lobo, comenta Martha, foi de expor uma linha de defesa que, de alguma maneira, tenta distingui-lo dos torturadores. “Participei de um quadro de torturadores, mas nunca torturei”, afirmou o médico para a repórter.
Trazendo para a entrevista um certo tom de humanidade, Amílcar contou ainda que a primeira vez que foi chamado para certificar a condição de saúde de um torturado, sua reação foi a de vomitar após o militar socar as costas do prisioneiro com uma luva de metal, levando o homem ao limite da vida. “Ele está bem, viu, não sei por que você veio”, contou o torturador ao médico.
Quando indagado pela jornalista sobre a razão de seu silêncio naqueles tempos, Amílcar disse que fora aconselhado por amigos a prezar pela sua segurança e a de sua família. “Eu não acho que ele queria notoriedade, ele queria ser reconhecido como uma pessoa que não torturou”, diz Martha Baptista, que chega à conclusão de que o parecer médico de Amílcar sobre os prisioneiros não era quase nunca acatado.
Ao DCM, Martha contou que o jornalista e político Cid Benjamin, militante preso pela ditadura, tem uma outra percepção do médico-tenente. Segundo Benjamin, que foi ao consultório de Lobo junto aos demais anistiados em 1981, e que também depôs no processo que cassou a licença de Amílcar, o “Dr Carneiro” costurou sua cabeça sem anestesia.
Cid Benjamin escreveu em 2013: “Conheci Lobo no dia 21 de abril de 1970, quando fui preso e ferido por dezenas de coronhadas de fuzil na cabeça numa briga com agentes do DOI-CODI, e ele (Doutor Lobo) foi chamado para me dar pontos. Foram, ao todo, 17 pontos. Dados de modo frio, naturalmente. Nessa mesma noite, fui amarrado em uma cadeira ao lado do pau-de-arara, e Lobo me aplicou pentotal (soro da verdade).Voltei a encontrá-lo, nos dias seguintes em novas sessões de tortura, quando ele me examinou e assegurou aos algozes que eu não estava ao ponto de morrer e que as sevícias poderiam continuar (…) Ele era uma peça daquela engrenagem sinistra. Como tal, deveria ter sido julgado e condenado”.
A repórter interpelou Lobo sobre Benjamin, mas o doutor se defendeu dizendo que costurou o prisioneiro sem anestesia porque os presos rejeitavam ao máximo qualquer injeção pelo medo de serem injetados com alguma substância letal.
Martha conta que o psiquiatra tinha uma “fixação” por Hélio Pellegrino, um proeminente psicanalista brasileiro da época. “Ele foi ao encontro do doutor Pellegrino, como se quisesse o perdão dele, era como se fosse uma espécie de sacerdote para ele”, reflete a jornalista.
Uma semana após o revelador encontro no apartamento do homem que viu Rubens Paiva morrendo, Martha Baptista ainda foi convidada para visitar o sítio do médico em Vassouras, mas a conversa não evoluiu para novos fatos e a revista Veja não se interessou em publicar nada. Na ocasião, Lobo pediu que Martha escrevesse uma biografia dele. Ela acabou não fazendo. Então, em 1989, Amílcar mesmo lançou suas memórias no livro “A Hora do Lobo e a Hora do Carneiro”.
O médico do DOI-CODI desabafou com Martha. Lobo esperava que sua declaração ajudasse a mudar a versão de que o deputado havia sido sequestrado. E mudou, pois, após essa entrevista para a Veja, outras testemunhas vieram a público, reavivando suas histórias e dando finalmente encaminhamento para a investigação do caso Rubens Paiva.
“Ele era um personagem incrível, um personagem e tanto, que participou de todo esse subterrâneo da repressão e ao mesmo tempo queria cuidar da cabeça dos outros e dele próprio. Daria uma história bem interessante”, declara Martha Baptista.
Após o serviço militar, Amílcar Lobo passou a clinicar na área da psicanálise com civis. Mais tarde, durante a década de 1980, encararia as denúncias de sua má-prática da medicina, tendo cassada a licença para atuar pelo Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro e pelo Conselho Federal de Medicina.
“Aquilo era um jogo doente, com pessoas extremamente doentes”, afirmou Amílcar Lobo, que morreu em 22 de agosto de 1997, vítima de pneumonia, infecção generalizada e isquemia cardíaca. Ele tinha 58 anos.