Espremida entre o poder crescente das operadoras de planos de saúde e as decisões de uma agência reguladora que tem fama de deliberar sempre contra o lado mais fraco, a maior parte dos 51 milhões de participantes dessa modalidade de saúde privada vive entre a insegurança provocada pela redução e violação contínua de direitos e o desespero com o agravamento das doenças. Em rodas de conversa de médicos e encontros de funcionários das operadoras, comenta-se abertamente que o objetivo do esvaziamento dos planos de saúde tradicionais é transferir para o SUS os procedimentos mais caros e demorados e deixar sob a responsabilidade das empresas do ramo apenas os cuidados mais baratos, rápidos e rentáveis.
“Não é mais um plano oculto. Eles dizem isso em audiências públicas, defendendo o modelo de ‘plano ambulatorial’, expressão que nos recusamos a utilizar”, dispara Lucas Andrietta, coordenador de saúde do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec) de São Paulo. A transferência de procedimentos caros e demorados para o sistema de saúde pública, continua Andrietta, é a consequência óbvia da expansão de contratos mais restritos, da maneira como as operadoras desejam. “Na medida em que as pessoas necessitarem de cuidados assistenciais não cobertos pelos novos tipos de planos, elas vão precisar do SUS, obviamente, isso é inquestionável.”
De 2022 a 2024, houve um aumento de 43% no número de reclamações relacionadas a planos de saúde, destaca Renata Molina, especialista do Procon paulista. “É um avanço relevante e abrange uma problemática que diz respeito a operadoras de planos de saúde que determinam reajustes extremamente elevados nos contratos, muito acima dos índices calculados pela ANS, e que fazem cancelamentos unilaterais, em especial dos contratos coletivos”, prossegue a especialista. Há também um grande movimento dessas empresas, desde 2023, para uma mudança nas regras de reembolso. O resultado é uma elevação considerável de cancelamentos, tanto por iniciativa de beneficiários, que não conseguem mais pagar as mensalidades, quanto por iniciativa de operadoras, que deixam de ter interesse econômico em determinados contratos.
Nos registros do Procon de São Paulo, as principais reclamações são relacionadas a cobranças e a contestação de valores, que compõem entre 38% e 39% do total de queixas. Na sequência, destacam-se as questões relativas aos contratos, como cancelamentos, mudanças ligadas à rede credenciada e outros problemas de prestação de serviços. Dificuldades com pedidos de reembolso negados, questionamentos sobre reajustes e transtorno em obter atendimento integram o rol de reclamações diárias. “Em muitos casos, as falhas dos planos se referem a consumidores que estão internados ou que precisam fazer um exame e não conseguem. O resultado é um aumento na judicialização da saúde”, destaca Molina.
Na terça-feira 18, a ANS anunciou a realização de uma consulta pública sobre um novo plano de saúde, restrito a consultas eletivas e exames, sem incluir pronto-socorro, internação e tratamento. O modelo proposto pela agência está em sintonia com os interesses das operadoras.
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Sobrecarga. Cada vez mais, o SUS terá de acolher pacientes que necessitam de cuidados de alto custo, mas foram recusados pelos planos privados – Imagem: Breno Esaki/SS/GOVDF e Prefeitura de Nova Iguaçu/GOVRJ
Carol Hilal, assessora da ANS, nega: “Não é nada imposto pelas operadoras, não é uma reivindicação delas”. O novo produto seria dirigido para a parcela da população que ainda não tem plano de saúde, para baratear o acesso de quem depende só do SUS. Hilal rebateu também a existência de um movimento das operadoras para transferir procedimentos mais caros para o SUS. “Não tem isso, a gente não discute na ANS, porque não é uma questão, ninguém nunca trouxe esse assunto para cá.”
A desconstituição dos planos, entretanto, prossegue, como revelam numerosos relatos de familiares de pessoas com deficiência, a exemplo de Fabiane Simão, da Associação Nenhum Direito a Menos, do Rio de Janeiro. A entidade surgiu em 2022, na forma de um coletivo, quando os planos começaram a não cumprir liminares para fazer o repasse de pagamento às clínicas. Como consequência dessa omissão, muitos estavam ficando sem terapia. Mobilizou-se então uma movimento contra o chamado rol taxativo, que consiste em uma lista de procedimentos cobertos pelos planos, deixando de fora vários outros. A abolição desse mecanismo ocorreu após uma batalha da qual o coletivo Nenhum Direito a Menos participou. O resultado foi que milhões de pessoas voltaram a ter tratamentos, terapias e medicamentos custeados pelos seus planos.
A partir de 2023, começou outro grande movimento, desta vez por parte dos planos, de não cumprimento de sentenças. “Em setembro, houve alguns cancelamentos unilaterais. Um desses planos foi o do meu filho, hoje com 10 anos de idade, que tem paralisia cerebral e autismo”, relata Simão. “O coletivo tinha uma página na internet, a gente lutava e tentava conscientizar outros pais.” Em 2024, no início do ano, a onda de cancelamentos cresceu, bem como a recusa de fazer os repasses para as clínicas. O coletivo convocou uma mobilização.
“Achávamos que conseguiríamos reunir meia dúzia de pessoas, mas no final havia mais de 400 famílias. A mídia local noticiou e continuamos tocando a luta. Em abril, fizemos outra grande manifestação, diante do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.” Nesse momento, o coletivo foi transformado em associação, passou a ter mais visibilidade e começou a receber denúncias de outras práticas abusivas, como o cancelamento de planos de idosos, interrupção de tratamento de idosos em home care e cancelamento de planos de beneficiários em tratamento de câncer. A entidade aproximou-se das associações de pessoas com doenças raras.
A Associação Nenhum Direito a Menos avançou e incluiu na pauta a luta pelos direitos das pessoas com deficiência em todos os espaços, não só em relação aos planos de saúde, mas também para assegurar o acesso a locais de lazer, às escolas e ao Benefício de Prestação Continuada. Essa convergência resultou em uma grande manifestação no Rio de Janeiro. A entidade também participou de forma ativa da constituição de uma Comissão Parlamentar de Inquérito na Assembleia Legislativa fluminense, mas a Associação Brasileira de Planos de Saúde entrou com um mandado de segurança para suspender a investigação e teve seu pedido acolhido.
A batalha por uma CPI federal, após 18 anos de tramitação, também foi inglória. Terminou em maio, depois de uma reunião a portas fechadas entre o presidente da Câmara, deputado Arthur Lira, e os representantes dos planos de saúde. No fim, a comissão foi sepultada antes mesmo de nascer.
A advogada Samanta Moura, especializada em direito das pessoas com deficiência (PCDs) e secretária-adjunta da Associação Brasileira de Advogados em Niterói, onde preside a comissão dos direitos dos autistas e seus familiares, tem um filho autista, com 10 anos de idade, e conhece a tortuosidade da luta por direitos dos participantes de planos de saúde.
Restrito a consultas eletivas e exames, o novo plano proposto pela ANS atende aos interesses das operadoras privadas
“A ANS está sendo muito covarde, pró-operadoras, não dá suporte aos usuários dos planos, que sofrem com cancelamentos em massa e reajustes abusivos”, dispara Moura. Os planos de saúde, continua a advogada, estão fazendo “uma verdadeira caça às bruxas com as famílias dos autistas. Temos levantado muito essa bola, apoiando as famílias para recorrerem ao Ministério Público. Há um descaso, eles estão afrontando todas as regras do Direito e a Constituição Federal, que estabelece a saúde como um direito basilar de todos nós”, afirma a advogada.
Moura cita o exemplo de duas pessoas de uma mesma família, uma delas com diagnóstico de autismo, que tiveram aumentos diferenciados dentro de um mesmo plano. “Fiz um boletim de ocorrência. As operadoras estão massacrando as famílias de PCDs. Qualquer pessoa que tenha uma grande utilização de plano de saúde está ficando assim, à margem.”
No Rio, acrescenta Moura, há grávidas que faziam o acompanhamento da gestação em um hospital e não podem mais, porque o hospital foi descredenciado e não colocaram outro equiparável. “As notificações feitas à ANS não dão em nada, não resultam em nada. O plano de saúde diz ‘nós estamos resolvendo’ e a ANS entende que ‘está tudo bem’, como se fosse uma resposta satisfatória. As multas para os casos em que a operadora não resolve o problema em dez dias úteis simplesmente não são aplicadas, em grande parte dos casos. A empresa não é autuada, por vezes nem sequer é acionada, e os beneficiários não têm para onde correr.”
“As operadoras querem oferecer contratos fechados, com uma lista de procedimentos que elas mesmas definem”, lamenta Andrietta. “A ANS usa o argumento falacioso de que isso vai baratear e democratizar os planos de saúde. O que vai acontecer é uma disseminação de contratos que não oferecem cobertura adequada, que empurrará as pessoas, em determinado momento, para o sistema público. Este é o resultado esperado.” •
Publicado na edição n° 1350 de CartaCapital, em 26 de fevereiro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Jogo de empurra’