Por [Novo Nome do Autor]*
Do Brasil de Fato
João Pedro Stedile vai receber na próxima segunda-feira (16) a Medalha do Mérito Farroupilha da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, proposta pelo deputado Adão Pretto Filho (PT). Na sua argumentação, Pretto lembra que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é o maior produtor de arroz orgânico da América Latina. No Rio Grande do Sul, essa lavoura sem veneno nem adubos químicos colhe 16 mil toneladas/ano, trabalho de 13 mil famílias de 345 assentamentos distribuídos por 98 cidades. É apenas uma referência, entre muitas, sobre o movimento, fundado em Cascavel, no Paraná, mas que deu seus primeiros vagidos no chão vermelho do Norte gaúcho.
Não será a primeira medalha entregue ao coordenador do MST. De foro mais poderoso, a Câmara dos Deputados, recebeu a Medalha do Mérito Legislativo, concedida a personalidades brasileiras ou estrangeiras que prestaram serviços considerados socialmente importantes. Outro parlamento, o de São Paulo, entregou-lhe o Prêmio Santo Dias de Direitos Humanos. E o governo de Minas Gerais lhe atribuiu sua maior honraria, a Medalha da Inconfidência. Não é pouca coisa mas no quesito ele perde para o MST.
O movimento recebeu o Right Livelihood, o Nobel Alternativo, dedicado a projetos e pessoas que desenvolvem “soluções práticas e exemplares” para problemas sociais urgentes. Entre seus agraciados estão o pacifista Daniel Ellsberg, responsável pela revelação dos Papéis do Pentágono e dos crimes dos EUA no Vietnã, e o ecologista gaúcho José Lutzenberger.
Foram para o MST o prêmio Rei Balduíno, conferido por uma fundação belga pela atuação em prol da reforma agrária, o Esther Busser Memorial Prize, concedido pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), uma das agências da ONU, devido à luta por justiça social, o espanhol Acampa-Pola Paz e Dereito a Refuxio e o Itau-Unicef Educação e Participação.
Apesar da chuva de premiações e, portanto, do respeito internacional que desfrutam um e outro, alguns deputados torceram seus narizes com a decisão da Casa.
Conheço João Pedro Stédile há uma era e só tenho boas palavras para dizer sobre a batalha de 40 anos que trava contra a estupidez, a desigualdade, a injustiça e a violência atávica que grassa nos grotões do Brasil profundo, onde as normas legais são cuspidas do cano do 38.
Não conheço nenhum dos parlamentares que se insurgiram contra a homenagem. Assim, admitindo a minha deficiência, decidi conhecê-los. Quis entender as razões do estresse. Quem sabe teriam uma alegação a considerar. Fui procurá-los onde se expõem generosamente: as redes sociais.
Não por acaso, todos se hospedam em legendas da ultra direita. Não gostam dos homenageados, o que é, claro, seu direito. Talvez não gostem de vacinas ou da esfericidade da Terra, o que também seria seu direito embora uma estultice rotunda. Gostam do sagrado latifúndio, gostam do Senhor das Mortes e gostam, presumo, das gargalhadas que dava imitando os moribundos da covid. De onde se conclui que daí podemos esperar Deus, pátria, família e dois canos fumegantes.
Municiados por mídias de corte neofascista e tóxico postam flores de originalidade como ataques a Lula, a Janja, ao ministro Fernando Haddad, ao Judiciário e a Alexandre de Moraes. Alguns ostentam uma intensidade agressiva que conflita com a rarefação dos argumentos, que rivalizam com uma redação da quarta série do ensino fundamental.
Em negação, postam sofregamente, tratando desinformação como informação. Um diz que o golpe urdido e fracassado contra a democracia pelos derrotados de 2022 é invenção.
Outro sorri em selfies em Portugal e na Itália ao lado dos herdeiros de Mussolini e Salazar.
O grau de descolamento do mundo real levou uma dessas figuras a criticar a aproximação de Lula do ex-presidente uruguaio Pepe Mujica, a quem incluiu no seu rol de “personalidades autoritárias”. Um terceiro, com veia humorística, afirma que, ao contrário de Lula, Bolsonaro fez muito pelo meio ambiente.
Certo, urge manter a matilha alimentada, mas não era preciso exagerar. No front midiático, os cães de guarda do patronato também arreganharam os dentes. Antigos e novos mandaletes seguiram o mesmo e arcaico roteiro. Cumpriram seu papel.
A verdade é que a reforma agrária sempre foi vista, no estado e no país, com um misto de incompreensão e intolerância.
Uns e outros mais lucrariam se atentassem aos fatos. Um deles: no Rio Grande de 1979 – ainda antes da irrupção do MST – as glebas Macali e Brilhante, em Ronda Alta, estavam nas mãos de dois proprietários. Anualmente, produziam 10 mil sacas de soja e cinco mil de milho até então. E mantinham 200 cabeças de gado.
Naquele ano, foram ocupadas por 100 famílias. Em 2021, colhiam 142 mil sacas de soja, 42 mil de milho, 48 mil de trigo e duas mil de feijão. Sem contar 1,5 milhão de litros de leite/ano, 984 mil aves e três mil porcos. O nome disso é função social da propriedade e está na Constituição. E os dados são oficiais, da Emater/RS.
É a pujança oriunda do acesso à terra aos pequenos que permitiu ao MST doar 853 toneladas de alimentos apenas em 2020 para os três estados sulinos, das quais 290 mil para o Rio Grande do Sul. Vivia-se a pandemia e havia fome. Nas enchentes, entregou mais de 120 toneladas de comida nas comunidades atingidas, além de mais de 100 mil marmitas e 17 mil cestas básicas.
Mas produzir comida com qualidade é apenas um dos itens da ação civilizatória trazida pela partilha da terra. A defesa ambiental é outro, através do plantio de árvores e o cultivo sem agrotóxicos. Os ganhos do MST na educação são internacionalmente reconhecidos. São duas mil escolas em acampamentos e assentamentos e mais de 100 cursos para assentados em universidades públicas do país. Diversidade de gênero é, desde 2015, uma pauta acolhida. Desde 2018, existe o Coletivo LGBT que combate a LGBTfobia em acampamentos e assentamentos.
Ao contrário do que ocorreu com a concessão da mesma comenda a Sérgio Moro, pulverizado enquanto juiz pelo STF, e Jair Bolsonaro, com passagem comprada para ver o Sol nascer quadrado, a entrega da medalha do Mérito Farroupilha a João Pedro engrandece a Assembleia.
É muito provável que alguém, com autoridade infinitamente maior do que o Parlamento gaúcho, pense da mesma maneira. O Papa Francisco, por exemplo. Em 2020, o pontífice agradeceu formalmente ao MST pela distribuição de comida aos pobres na pandemia, identificando no gesto “um sinal do reino de Deus, que gera solidariedade e comunhão fraterna” e abençoou a sua bandeira vermelha.
Portanto, este 16 de dezembro, à beira do Natal, momento que evoca a comunhão entre os homens de boa vontade, é um grande dia para o Parlamento gaúcho. A Assembleia está de parabéns.
*Jornalista, escritor e editor do Brasil de Fato RS.
**Editado por: [Novo Nome do Editor]