Adeus ao amigo Sílvio Tendler!

Por João Batista Damasceno*, no Resistência Lírica

As fotos registram dois dos muitos encontros que tive com meu amigo Sílvio Tendler. Todos recheados de ironia, sarcasmo e seriedade. Mas nenhum com sisudez.

O pássaro no meu ombro, na foto à esquerda, é Renè. O nome francês é porque o Silvio não sabia o sexo do animal. Daí que poderia manter o nome quando descobrissem ou ele declarasse ser do sexo masculino, feminino, interssex ou neutro. Sem embarcar no identitarismo, Sílvio ria da situação. Passei longos momentos conversando com Sílvio, com a participação do Renè. Renè participava das conversas e repetia o som que emitíamos ao fim de cada frase. Renè assobiava A Internacional (quando queria). Na maioria das vezes emitia uns sons que não sabíamos o que significava, mas o incluíamos na conversa. E era muito divertido. A foto é de 02 de março de 2024. Numa das internações hospitalares do Sílvio, Renè – sentindo sua falta – saiu pela janela para procurá-lo e nunca mais voltou.

A outra foto registra a exibição e debate do documentário do Sílvio “Os Advogados Contra A Ditadura”. Nela estão o Silvio, a inigualável Eny Moreira, Modesto da Silveira e eu. Sem os três eu me sinto órfão mais uma vez.

Com o Sílvio eu me divertia fazendo coisas sérias. Numa delas foi numa reunião do Conselho Deliberativo da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), onde ambos éramos Conselheiros Titulares, e uma corja indecente queria punir um idoso que – durante a pandemia – se descuidara e trocara de roupa diante da câmera. O ancião supunha ter desligado a câmera, quando o havia feito tão somente do microfone. Os moralistas, sem ética, queriam compor uma comissão para investigação da conduta do velhinho. Opus-me que os próprios acusadores formassem a Comissão Torquemada para investigação da nudez inadvertida. Retiraram um deles da Comissão Savonarola e incluíram o Sílvio. O Sílvio era o único opositor da formação da comissão e da punição do descuidado ancião.

Ao fim da reunião, satisfeito com a inclusão do Sílvio na Comissão de Investigação por Ato Atentatório à Moralidade dos e das Vestais da ABI, sugeri que a apresentação do Relatório da Comissão de Investigação fosse precedida da apresentação do filme “Toda Nudez Será Castigada”. O Sílvio se escancarou de rir e um escroto, que hoje ocupa cargo de Conselheiro da Presidência da República, nos recriminou, dizendo que aquela comissão era coisa séria.

Nas reuniões que fizeram, para apurar a nudez, o Silvio preparou um parecer que começava relatando o julgamento d`As Bruxas de Salém e outras atrocidades registradas na história, bem como relembrou a história de cada um dos algozes do ancião. Todos se calaram, a comissão encerrou seus trabalhos, não fez qualquer relatório e o assunto jamais voltou a ser comentado nas reuniões da ABI. Em consequência o velhinho que se descuidara e trocara de roupa com exibição online deixou de viver sob a espada de Dâmocles que o sujeitava a situação vexatória. Tratou-se de uma comissão criada, instalada e esquecida, sem ato de encerramento dos seus trabalhos. Era coisa de gente moralista, com a ética própria dos moralistas, ou seja, de gente desocupada que não tinha outra coisa a fazer senão promover o mal-estar a terceiros. Os escrotos são maus e desejam a infelicidade alheia. Este é o sentido do termo.

Não faltaram trapalhadas. Na exibição do filme, também do Sílvio, “Ousar Viver! Histórias da Maria”, no antigo Estação Botafogo, em 11 de março passado, às 18h00, o Sílvio me mandou áudio da porta do cinema: “Estou te esperando! Estou te esperando! Já estou aqui no cinema”. Fui prá lá. Estava nas proximidades e cheguei em minutos. A exibição começaria às 20h00.

Foram muitos os encontros, conversas e provocações com o Sílvio. Todas com muito humor. Nossos últimos desencontros e mensagens foram no início de julho. Num ele reclamou que eu não estava num restaurante que ele esperava me encontrar. Noutro, ele me chamou para ir à sua casa. Mas eu acabara de chegar em casa cansado e fiquei de ir outro dia. Entrei em férias, viajei em julho, retomei às atividades no Tribunal e na universidade em agosto, quando ele já estava internado, e não fui ao seu encontro.

Sílvio não era tímido quando queria reclamar a visita dos amigos. Numa das suas internações eu lhe mandei mensagem perguntando como estava. Ele não disse do seu estado. Disse onde estava e o número do quarto. Fui imediatamente vê-lo. Ao entrar no quarto ele caiu na gargalhada e disse: “Você entendeu que o que eu queria era visita”. Rimos juntos.

Rirei toda vez que lembrar das conversas que tivemos. Algumas impublicáveis!

*João Batista Damasceno é professor e doutor em Ciência Política.

Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.

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Last Update: 06/09/2025