Por Jair de Souza*
Ultimamente, tem havido muita discussão sobre a maneira como o Presidente Lula lida com as dificuldades com as quais sua atual gestão de governo se depara no dia a dia.
Há uma crença generalizada de que Lula nutre um profundo sentimento de identificação com as aspirações populares e que, em vista disto, está constantemente preocupado em encontrar formas de atender satisfatoriamente as reivindicações do povo. É assim que a maioria das pessoas pensa, eu inclusive. São poucas as pessoas que distoam neste ponto e, por vezes, fazem-no de modo mal-intencionado.
Porém, é conveniente ressaltar que, nem sempre, atuar em consonância com o senso comum significa estar agindo em função do objetivo estratégico real dos grupos aos quais almejamos favorecer.
Sem pretender equiparar as situações, e tão somente para deixar mais evidente o que gostaria de expressar, vou recorrer a uma ilustração relacionada com o amplo e insaciável desejo pelo consumo de doces por parte de nossa população infantil.
Se partirmos do princípio que o correto é buscar atender os anseios daqueles com quem temos afinidade, deveríamos aceitar como louvável o comportamento dos pais que se dispõem a saciar os desejos de seus filhos ao oferecer-lhes o máximo de guloseimas que estes estão sempre querendo consumir. No entanto, todos sabemos muito bem o quão nocivo isso significa para a saúde das próprias crianças.
Por isso, muito mais do que satisfazer suas expectativas imediatas, o apropriado seria que os responsáveis tratassem de educá-las para que viessem a entender que, no futuro, aquilo lhes causaria muito mais prejuízos do que benefícios.
De todas maneiras, para que qualquer tarefa educativa neste sentido possa ter êxito, é determinante que entre pais e filhos prevaleçam fortes laços afetivos, e exista um sentimento de confiança das crianças em seus progenitores.
Embora não devamos encarar o povo como uma massa infantilizada, é inegável que este sofre influência de uma série de lugares-comuns, preconceitos e deturpações, que lhe foram sendo inculcados ao longo do tempo através dos diversos aparelhos sociais pelos quais a ideologia das classes dominantes se impõe sobre a totalidade da sociedade.
Se não fosse assim, ninguém precisaria de trabalho e organização política para ganhar consciência e defender seus verdadeiros interesses. Bastaria aquiescer com aquilo que é difundido como válido e desejável pelos diversos meios à disposição dos que exercem o poder real na sociedade.
Esclarecido este primeiro ponto, partamos para o seguinte.
E, aqui, é mister responder a uma pergunta iniludível: o que é de fato o melhor para as massas trabalhadoras de nosso país?
Apesar de sua aparente simplicidade, estamos diante de uma das questões mais complexas imagináveis.
É que a resposta adequada depende de que tenhamos respondido a outra indagação anterior: que tipo de sociedade aspiramos edificar para nosso povo?
E, quanto a isto, não basta adjetivar qualitativamente a meta almejada. Não é suficiente dizer que queremos viver em um “mundo bom, justo e solidário”, por exemplo.
O adjetivo requerido precisa também deixar evidente a base estrutural dessa sociedade. Por isso, será imprescindível recorrer a termos como “capitalista, neoliberal, socialista, comunista”, ou outro com semelhante função.
Há quem considere que as estruturas sociais básicas não precisariam sofrer grandes transformações para chegarmos à sociedade mais propícia, na qual viveríamos todos da melhor maneira possível.
Para os que creem nisso, a continuidade do sistema capitalista não teria necessariamente de entrar em discussão, nem mesmo pelas lideranças que se sintam vinculadas com as aspirações dos trabalhadores.
Em conformidade com esta visão, a luta e os esforços dos líderes e dos partidos que buscam defender as massas trabalhadoras deveriam se orientar no sentido de forçar que a parcela da riqueza gerada que corresponde aos trabalhadores venha a ser sempre a maior possível. Contudo, as regras que norteiam o funcionamento do capitalismo liberal poderiam permanecer intactas, sem serem questionadas.
No entanto, a menos que haja profundas transformações nos pilares de sustentação do atual sistema regido pelos preceitos do capitalismo, há outros que acreditam que seja impossível constituir uma sociedade na qual os interesses das maiorias trabalhadoras venham a ser priorizados e garantidos de modo permanente.
Portanto, para quem cultiva este entendimento, enquanto não fosse efetivada uma mudança radical nas estruturas vigentes na atualidade, não haveria nenhuma possibilidade real que viabilizasse nossa chegada a um estágio em que as condições das classes trabalhadoras não mais estivessem subordinadas aos caprichos dos detentores do capital.
Muita gente costuma dizer que Lula se identifica muito mais com os que encarnam a primeira das duas alternativas acima indicadas. E, quanto a isto, tendo a concordar. Raramente, se alguma vez, Lula faz menção a uma sociedade estruturada em outras premissas que não as do capitalismo liberal.
De minha parte, devo confessar que sou abertamente adepto da segunda. Mas, a dúvida que creio ser importante esclarecer tem a ver com a possibilidade, ou impossibilidade, de que os adeptos dessas duas visões políticas trabalhem de modo unitário e coordenado para que, no final, a solução mais favorável para as maiorias trabalhadoras prevaleça. Sobre isto, vou tentar esboçar algumas palavras.
Não tenho a mínima dúvida de que, no capitalismo, a classe trabalhadora jamais alcançará a hegemonia da sociedade de modo a impor seus interesses estratégicos. No entanto, também não deixo de reconhecer que, mesmo sob este sistema econômico, toda e qualquer melhoria favorável aos setores populares deve sempre ser bem-vinda e estimulada. Só não podemos deixar-nos levar pela ideia de que isto bastará para nos conduzir ao objetivo que nos inspira a travar a luta política.
Os avanços conquistados ainda sob o sistema em que estamos, mesmo que pequenos, devem servir para estimular-nos a dar passos cada vez maiores no caminho daquilo que sonhamos alcançar.
Quanto à posição de Lula em todo este processo, o panorama se revela bastante complexo e ambíguo.
Ao mesmo tempo em que demonstra estar dotado de uma incomum argúcia para auscultar os sentimentos das massas populares, Lula não parece disposto, ou interessado, a fazer das mesmas agentes ativos e conscientes de um processo de transformação revolucionário.
Segundo a visão que nele tem predominado desde que assumiu a presidência pela primeira vez, cabe ao governo detectar as carências da população e propor medidas para solucioná-las, ao passo que, por sua vez, ao povo corresponde expressar sua concordância com o que vem sendo feito em seu benefício e referendá-lo pelo voto, dando sua anuência para o prosseguimento da atuação governamental.
Em consequência, a habilidade de negociação política de Lula e de seus auxiliares diretos torna-se o fator crucial para que o governo consiga ter sucesso em seu objetivo de atender as demandas populares.
Não me recordo de um único momento, durante todos seus anos de gestão, em que Lula tenha convocado o povo para que se mobilizasse com vistas a fazer valer alguma de suas reivindicações que estivesse sendo inviabilizada pela ação de setores antipopulares. A luta de massas visando dirimir conflitos interclasses não está entre os recursos aos quais Lula costuma recorrer.
Porém, por mais que Lula seja uma figura de valor inestimável neste momento para que tenhamos a pretensão de derrotar eleitoralmente o nazifascismo bolsonarista-neopentecostal, acho importante ter ciência de que a superação dos limites do capitalismo liberal não está incluído em suas perspectivas, a menos que venha a ser impulsado a isto por pressão do campo popular.
Assim, para os que, como eu, entendem que não faz sentido ficar inteiramente dependente da exclusiva disposição de uma única pessoa em tomar alguma medida que nos dê condições de avançar no rumo de uma sociedade de novo tipo, a tarefa prioritária é empenhar-nos no sentido de contribuir para que o nível de consciência e organização das massas trabalhadoras cresça o suficiente como para fazer com que o peso de sua mobilização gere uma conjuntura que induza Lula a transpor os limites dentro dos quais ele tem atuado.
Mas, seria isto uma possibilidade viável? Não sei, não creio que possamos responder de antemão sem que esforços no sentido de sua consumação tenham sido realizados.
O que me parece menos incerto é que a outra alternativa, ou seja, a da acomodação e conciliação de classes, implica na abdicação definitiva da criação de um outro mundo, aquele no qual os trabalhadores sejam de verdade os senhores de seu próprio destino.
*Jair de Souza é economista formado pela UFRJ; mestre em linguística também pela UFRJ.
*Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.
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