Diante do cerco militar à Faixa de Gaza, da repressão a vozes dissidentes dentro de Israel e da ofensiva legislativa sobre o Judiciário, cresce o debate sobre o caráter democrático do Estado israelense. Para o professor Reginaldo Nasser, da PUC-SP, no entanto, trata-se de uma falsa premissa: “Israel não é uma democracia. É um Estado colonial”.

“Israel é o Ocidente no Oriente Médio. Foi criado e mantido como base do Ocidente naquela região. E sempre funcionou com esse duplo padrão: uma democracia para uma parte da população, e um regime de dominação militar para os palestinos”, afirma.

Com mais de 600 dias de massacre sobre a Faixa de Gaza e 77 anos de ocupação colonial das terras palestinas, tais fatos deveriam ser suficientes para comprovar que o Estado israelense está longe de ser democrático.

São 53 mil mortos desde o 7 de outubro, entre eles 19 mil mulheres e crianças, bairros inteiros soterrados, hospitais transformados em escombros e uma população faminta vivendo sob bombardeios diários. 

O professor Reginaldo Nasser, da PUC-SP, analisa o papel estrutural do colonialismo e do apartheid na formação do Estado de Israel. Foto: Reprodução

Somado a isso, Israel agora experiencia uma ofensiva autoritária interna contra professores, reitores e estudantes, o sistema Judiciário e aos poucos cidadãos que se opoem ao genocídio no enclave árabe. 

O país atravessa um processo de erosão institucional acelerado, em que as liberdades civis, o sistema judicial e o ensino público tornam-se alvos preferenciais do governo e da sua base religiosa ultranacionalista e racista.

Segundo Nasser, no entanto, a mitologia em torno da democracia israelense repete um padrão ideológico do Ocidente. 

“Desde Atenas, constrói-se uma ideia de democracia que exclui as ações colonialistas. A França matou um milhão de argelinos após a Segunda Guerra. A Inglaterra manteve colônias na África e campos de concentração no Quênia nos anos 1950. A democracia ocidental sempre conviveu com o extermínio e a dominação fora de suas fronteiras”, explica.

Para os palestinos, diz ele, a “maior democracia do Oriente Médio” nunca existiu. Mesmo os 20% que vivem dentro de Israel são tratados como cidadãos de segunda classe. 

“Quando se fala de retirada de poderes da Suprema Corte, por exemplo, isso nunca tem a ver com os palestinos. É uma disputa interna. Como se dizia no Brasil escravocrata: uma discussão entre brancos”, ironiza o professor.

Apartheid, ocupação e controle total

O regime imposto nos territórios ocupados é, segundo Nasser, uma expressão não apenas militar, mas também da legalidade e da ideologia imperialista e sionista.

“O direito internacional tem resquícios coloniais. A ideia de que o ocupante deve proteger o ocupado é absurda por si. Mas mesmo esse padrão mínimo Israel não respeita”, diz.

Nasser se refere ao chamado direito de ocupação, previsto nos artigos da Quarta Convenção de Genebra de 1949, segundo os quais um poder ocupante deve garantir a segurança e o bem-estar da população civil sob seu controle. 

No caso da Palestina ocupada, isso incluiria a obrigação de fornecer acesso a saúde, educação, alimentos, e de proibir transferências forçadas de população, prisões arbitrárias e punições coletivas.

“Israel não só ignora essas obrigações, como as subverte. Utiliza o próprio aparato jurídico-militar da ocupação para institucionalizar o controle: prende crianças, bloqueia alimentos, mantém civis em tribunais militares. É um Estado que ultrapassa todo e qualquer limite”, completa.

Ele denuncia a prisão de crianças, a detenção de civis sem acusação e o uso dos tribunais militares como forma de institucionalizar a repressão. 

“É um Estado que ultrapassa todo e qualquer limite. E tem apoio da população. A Constituição de Israel é clara: é um Estado judeu. A religião e a etnia são critérios de pertencimento”, diz

Judiciário e legalidade da expulsão

O professor diz que viu com ceticismo a empolgação de setores progressistas com as manifestações dos israelenses contra a reforma do Judiciário de Netanyahu. Para ele, também soa inocente tratar este Poder da república israelense como último bastião democrático diante da ofensiva autoritária do governo.

Segundo Nasser, a própria história da Suprema Corte evidencia seu papel central na legitimação da ocupação e da política de apartheid.

“Logo depois da criação do Estado de Israel, a Suprema Corte julgou o destino das propriedades dos palestinos expulsos. Criaram a ‘lei dos ausentes’. Como os palestinos não voltaram, o Estado sequestrou as terras. Foi o Judiciário quem legitimou isso.”

A Lei dos Ausentes, aprovada em 1950, permitiu ao Estado de Israel declarar como “ausente” qualquer pessoa que tivesse deixado sua residência entre novembro de 1947 e setembro de 1948 — mesmo que estivesse em outro local dentro da Palestina histórica.

Essa definição jurídica ampla incluiu centenas de milhares de refugiados palestinos expulsos durante a guerra de 1948, bem como deslocados internos ainda dentro das fronteiras israelenses.

As propriedades desses “ausentes” foram transferidas para a tutela do Custodiante de Propriedades dos Ausentes, um órgão estatal que as vendeu ou redistribuiu a cidadãos judeus e ao próprio Estado.

Em decisões judiciais posteriores, inclusive da Suprema Corte, o Judiciário israelense confirmou a validade da lei, consolidando o confisco massivo sob a aparência de legalidade.

O instrumento é amplamente citado por juristas como exemplo de legislação de limpeza étnica institucionalizada, e serviu de base para a consolidação demográfica do novo Estado. A Human Rights Watch, em relatório de 2021, identificou a Lei dos Ausentes como um dos principais marcos legais do apartheid israelense.

Ele compara a estrutura de Israel ao apartheid sul-africano e o colonialismo na Oceania, e afirma que muitos dos próprios sul-africanos consideram a situação dos palestinos ainda pior. 

“É o mesmo modelo de colonialismo de povoamento. Como nos Estados Unidos com os povos indígenas, ou os ingleses na Austrália. O Estado protege, mas quem toma a terra é o povo. A população se beneficia diretamente. Esse é entre aspas ‘caráter democrático’ do colonialismo”, ironiza o professor. 

Netanyahu, judiciário e disputa entre elites israelenses

A crise interna em Israel, com ataques ao Judiciário e tentativas de destituir a procuradora-geral, portanto, é tratada por Nasser como parte da disputa entre diferentes alas do projeto sionista. 

A atual crise no Judiciário israelense tem sido tratada por parte da imprensa como um “risco à democracia”. Mas para o professor Reginaldo Nasser, ela revela um conflito mais profundo e estrutural: a disputa entre dois blocos históricos do projeto sionista — o sionismo secular-liberal e o sionismo religioso-ultranacionalista.

“Há uma crise de hegemonia entre o sionismo secular e o sionismo religioso. O Judiciário era reduto dos seculares. Mas virou obstáculo. E a extrema direita quer reconfigurar o Estado à sua imagem”, explica.

A tensão se intensificou a partir de janeiro de 2023, quando o então ministro da Justiça, Yariv Levin, apresentou um pacote de reformas com o objetivo de limitar o poder da Suprema Corte de revisar decisões do Executivo e do Legislativo, alterar a composição do Comitê de Nomeações Judiciais (que escolhe os juízes do país), e esvaziar a autonomia dos conselheiros jurídicos nos ministérios.

A proposta foi apoiada por setores religiosos e pela extrema direita, especialmente os partidos Shas e Sionismo Religioso, que compõem a base do governo de Netanyahu desde sua volta ao poder, em dezembro de 2022. Já a oposição liberal e parte da sociedade civil reagiram com protestos em massa, greves universitárias e ameaça de deserção por milhares de reservistas das Forças de Defesa de Israel.

Manifestantes israelenses marcham contra a reforma judicial promovida por Netanyahu. Para o professor Reginaldo Nasser, essas mobilizações expressam uma disputa interna entre setores seculares e religiosos do sionismo, sem romper com a estrutura colonial do Estado de Israel nem questionar o apartheid imposto aos palestinos. Foto: Reprodução

Apesar do recuo inicial, parte das medidas foi aprovada ao longo de 2024 e 2025, entre elas a alteração na composição do órgão que nomeia os juízes. A disputa chegou a envolver a procuradora-geral Gali Baharav-Miara, nomeada antes da posse de Netanyahu e vista como uma das últimas barreiras institucionais ao avanço autoritário.

Desde o início de 2025, ela passou a ser alvo de uma campanha de deslegitimação conduzida por ministros da coalizão. Em março, o próprio Levin abriu um processo formal para sua destituição.

Para Nasser, esse impasse não reflete uma ruptura democrática no sentido convencional, mas sim uma tentativa de radicalizar o controle de Estado pelas forças religiosas. “É uma disputa interna. O problema não é a democracia em crise. É a disputa por quem vai controlar o mesmo Estado colonial”, afirma.

Segundo ele, Netanyahu opera como elemento de ligação entre esses dois blocos. “Os religiosos só conseguem manter o poder com ele. E os liberais seculares querem derrubá-lo sem perder o controle do Estado. Em algum momento, Netanyahu vai ser o boi de piranha. Mas ainda não chegou essa hora”, diz

O impasse, porém, não altera a estrutura colonial. “As manifestações por reféns ou contra Netanyahu não têm nada a ver com o apartheid ou com os palestinos. É uma luta interna. O problema não é a democracia em crise. É a disputa por quem vai controlar o mesmo Estado colonial.”

A lógica de guerra e expansão permanente

O expansionismo israelense não é apenas uma resposta à virtuais ameaças externas, mas parte de sua própria formação. Nasser critica a narrativa de que Israel é um Estado cercado de inimigos. 

“Israel construiu este mito para justificar bombardeios e ocupações preventivas. O caso da Guerra dos Seis Dias é emblemático. Eles atacaram primeiro e depois alegaram defesa.”

A referência é ao conflito de junho de 1967, quando Israel lançou ataques aéreos massivos contra o Egito, Síria e Jordânia, destruindo grande parte das forças aéreas árabes ainda em solo. Embora Israel tenha alegado que agia em legítima defesa antecipatória, diversos historiadores e especialistas em direito internacional questionam essa versão.

Documentos desclassificados e relatos de autoridades israelenses, como o então ministro da Defesa Moshe Dayan, indicam que a liderança política sabia que não havia ameaça iminente de invasão. O próprio primeiro-ministro Menachem Begin, anos depois, admitiu: “Em 1967, não enfrentamos o perigo de aniquilação. Decidimos atacar porque queríamos nos posicionar melhor”.

A ofensiva de Israel resultou na ocupação da Península do Sinai, da Faixa de Gaza, da Cisjordânia (incluindo Jerusalém Oriental) e das Colinas de Golã. Foi o início da ocupação militar contínua desses territórios, considerada ilegal pelo direito internacional e objeto de inúmeras resoluções do Conselho de Segurança da ONU, incluindo as resoluções 242 e 338, que exigem a retirada israelense dos territórios ocupados.

As agressões israelenses às soberanias nacionais de países da região não se limitam ao passado. Para o professor Reginaldo Nasser, a lógica de guerra preventiva que orienta a política externa de Israel persiste até hoje e tem raízes profundas na doutrina militar do país.

“O que Israel quer é um entorno seguro, limpo de qualquer resistência. A ‘muralha de ferro’ é o nome disso. Eles vão até onde não encontram resistência. Quando encontram, recuam taticamente”, afirma.

A doutrina da muralha de ferro (iron wall), formulada ainda nos anos 1920 pelo ideólogo sionista Ze’ev Jabotinsky, sustenta que os árabes jamais aceitariam pacificamente a presença judaica na Palestina, e que seria necessário impor a realidade do Estado israelense por meio da força. Essa ideia molda, até hoje, a postura do país em relação aos seus vizinhos.

Nos últimos anos, Israel tem realizado bombardeios sistemáticos no sul do Líbano, alegando combater posições do Hezbollah. No funeral de Hassan Nasrallah, líder do Hezbollah, que foi morto em setembro de 2024 num bombardeio, caças da Força Aérea de Israel sobrevoaram a capital Beirute em clara provocação e violação do espaço aéreo libanês.

Em outra violação do direito internacional, ataques aéreos contra instalações militares sírias, sobretudo durante a transição de poder do governo Bashar al-Assad para o governo de Abu Mohammed al-Golani, líder do grupo rebelde HTS. 

Caças israelenses se aproveitaram da fragilidade dos primeiros momentos do novo governo e atacaram centros de comando e defesa aérea da Síria no momento em que o novo gabinete ainda se consolidava.

Para Nasser, os ataques à Síria, ao sul do Líbano e ao Iêmem são expressão da mesma doutrina: impedir que qualquer governo árabe desenvolva capacidade militar. 

Barcos-patrulha lançadores de mísseis sírios destruídos por Israel no porto de Latakia. Foto: Reprodução

Segundo Nasser, essa lógica não muda com o tempo ou com a troca de governos. “Isso está no âmago do Estado de Israel. Não se trata de ser ou não uma democracia. É um projeto geopolítico que exige supremacia militar e elimina qualquer contrapoder na região.”

Entre o mito e a manutenção do poder

A entrevista com Reginaldo Nasser desmonta não apenas o discurso de que Israel seria uma democracia em risco, mas também o mito mais profundo: o de que essa democracia algum dia teria existido para todos.

Ao revelar o papel do Judiciário na legitimação do apartheid, a lógica expansionista do Estado como projeto geopolítico e a conivência das elites globais com o regime de ocupação, o professor expõe o que prefere-se não dizer: que o problema não é apenas Netanyahu, nem se resolve com reformas internas.

Israel, como afirma Nasser, não está em crise por romper com sua tradição democrática, mas sim porque seu modelo colonial enfrenta contradições internas — disputas de poder entre seculares e religiosos — e pressões externas cada vez mais organizadas pela sociedade civil global.

A causa palestina, marginalizada nos gabinetes diplomáticos, resiste como símbolo de uma luta mais ampla contra a naturalização da violência colonial.

Não há contradição entre a democracia que se reivindica e a ocupação que se exerce, porque uma nunca questionou a outra. O que há é um sistema que distribui liberdades de forma seletiva, conforme critérios étnicos e geopolíticos.

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Last Update: 30/05/2025