Jornalista palestino critica país por usar discurso LGBT para legitimar genocídio
Jad Salfiti, jornalista palestino morando atualmente em Berlin e Londres, escreveu um artigo no jornal The Guardian criticando a tentativa de Israel legitimar o genocídio de seu povo com declarações de que defende os direitos LGBTQIAP+.
O país se vale de uma narrativa em que nas terras islâmicas, como a Palestina, a comunidade queer é oprimida pela religião, enquanto Israel tem uma legislação defensora dos direitos dessas pessoas. A invasão se tornaria, portanto, libertação. Confira o texto na íntegra:
O Orgulho nunca foi apolítico, mas nos últimos anos, particularmente após o ataque da ocupação israelense à Faixa de Gaza em 7 de outubro de 2023, a coalizão dos direitos queer no Ocidente tem se sentido cada vez mais fragmentada.
Em Berlim, cidade que chamo de lar, os eventos do Orgulho se dividiram ao longo de linhas políticas, já que a Palestina tem sido um ponto recorrente de discórdia. Segundo os organizadores da Internationalist Queer Pride Berlin (IQP Berlin), uma divisão entre dois dos principais eventos alternativos do Orgulho ocorreu após um incidente em que os organizadores chamaram a polícia depois que participantes expressaram solidariedade entoando “Free Palestine” (Palestina livre). Enquanto isso, na parada oficial do Orgulho de Berlim, participantes já marcharam com bandeiras arco-íris e bandeiras israelenses ao lado de um carro alegórico da embaixada de Israel.
No ano passado, no IQP Berlin, o bloco da Palestina foi um dos maiores. Judeus e árabes marcharam lado a lado, enrolados em keffiyehs palestinas, escoltados pela polícia alemã.
O evento enfrentou repressão policial, incluindo agentes em trajes de choque completos, com cassetetes e escudos. Pelo menos 25 pessoas foram detidas, com o bloco da Palestina sendo um dos principais alvos da polícia.
Apesar dessas demonstrações de solidariedade, e dos riscos de repressão enfrentados pelos manifestantes, houve aqueles que zombaram da ideia de que pessoas queer possam encontrar causa comum com a Palestina e defender a libertação. O exemplo mais conhecido veio no ano passado, quando a pop star norte-americana Chappell Roan criticou o governo Biden por armar o exército israelense. No palco do festival Governor’s Ball, em Nova York, a cantora, que é lésbica e tem uma persona drag, recusou um convite da Casa Branca para se apresentar durante o mês do Orgulho, dizendo: “Queremos liberdade, justiça e direitos para todos. Quando vocês fizerem isso, aí sim eu irei.”
O gesto de solidariedade de Roan atraiu a ira do apresentador Bill Maher, que sugeriu que a cantora seria “jogada de um telhado em Gaza”, invocando um clichê frequentemente usado com base em um vídeo já desmentido pela Reuters e pela AFP, entre outros.
Ele continuou fazendo piadas sobre a carreira de Roan “explodir” como os pagers no Líbano, referindo-se a ataques israelenses que mataram 12 pessoas e feriram milhares. Centenas de crianças morreram nos meses seguintes no Líbano, e milhares em Gaza. Maher se apresentou como o herói liberal das pessoas queer, mas parecia mais fácil para ele, como para muitos no Ocidente, apontar o dedo para a sociedade palestina do que confrontar os sistemas que seus próprios países apoiam – sistemas que bombardeiam, deslocam e isolam palestinos queer em Gaza.
Quando Benjamin Netanyahu discursou no Congresso em julho de 2024, o primeiro-ministro israelense disse que manifestantes pró-Palestina que seguram cartazes dizendo “gays por Gaza” poderiam muito bem se chamar “galinhas por KFC”, sugerindo que nossa existência está marcada por contradições.
Essa tentativa de romper a solidariedade entre pessoas queer e a Palestina tem sido mortal. Um ano antes, um soldado israelense ergueu uma bandeira do Orgulho em Gaza, com “em nome do amor” escrito em inglês, hebraico e árabe. A conta oficial do Estado de Israel no X (antigo Twitter) vangloriou-se da façanha, dizendo que era “a primeira bandeira do Orgulho já hasteada em Gaza”. Como um palestino queer, é revoltante ver minha identidade usada como instrumento de guerra, mas o que acho mais estranho é a dissonância cognitiva: em nome do “amor” de quem essa bandeira foi erguida? Certamente não pelo amor aos palestinos queer que vivem em Gaza, que enfrentam 19 meses de terror, e uma vida inteira sob ocupação.
Em Jerusalém, cidade onde fui batizado, há uma cena muito pequena e orgânica de palestinos queer. Alguns palestinos chegam a visitar Tel Aviv para o Orgulho – se tiverem permissão para viajar até lá. A maioria não tem. Palestinos queer enfrentam obstáculos diferentes dependendo de onde vivem e de quão visíveis são; suas dores vivem precariamente sob o fogo cruzado de múltiplas lutas.
Um amigo em Gaza me disse que só queria viver em paz, longe do conservadorismo, do extremismo religioso e da guerra. Depois, descobri que ele perdeu seus pais, seu irmão e alguns primos nos ataques de Israel. Outro amigo, de Jerusalém, me disse que tinha uma mensagem para o Ocidente: a liberdade tem muitas camadas. “Estamos sob ocupação e enfrentando um genocídio contínuo”, disse ele. “Então, a primeira camada é simplesmente existir.”
Podemos imaginar e esperar por um mundo justo e seguro onde palestinos queer possam florescer. Embora existam algumas comunidades queer vibrantes, embora mais discretas, em várias partes do Oriente Médio, ainda há perseguição. Mas se o objetivo é que palestinos queer vivam em uma sociedade aberta e tolerante, então primeiro eles precisam sobreviver à agressão de Israel. Não pode haver Orgulho sob ocupação.
Existem organizações LGBTQ+ palestinas como alQaws e Alwan com aspirações de moldar uma sociedade palestina baseada na tolerância, igualdade e abertura. Uma ambição que se torna muito mais difícil – senão impossível – devido à ocupação.
Não dá para ver arco-íris sob os escombros. Da mesma forma, não se pode, com boa consciência, celebrar o Orgulho no Ocidente sabendo que muitos dos nossos países estão fornecendo as armas e o dinheiro que estão matando palestinos queer, junto com suas famílias. Apesar das tentativas de posicionar a luta por direitos queer como oposta à libertação palestina, tenho me emocionado ao ver que pessoas queer não caíram nessa armadilha. Neste mês do Orgulho, marcharemos novamente, cercados por confetes e keffiyehs.