Você deve ter ouvido que o primeiro-ministro de “Israel”, Benjamin Netaniahu, estaria fortalecendo o Hamas em Gaza… o que há por trás dessa história?  

Alguns argumentam que Netaniahu teria uma “aliança” ou pelo menos uma interdependência com o Hamas para servir aos seus próprios objetivos. Mas isso é verdade?  

Nos dois primeiros capítulos desta série, exploramos se “Israel” ajudou a criar o Hamas e se o usou para sabotar o Processo de Paz de Oslo. Agora, analisamos outra questão: Netaniahu estaria usando dinheiro de ajuda do Catar para apoiar o Hamas com o objetivo de bloquear uma resolução efetiva para o conflito?

A verdadeira história de como o Hamas foi criado

O Hamas foi criado por ‘Israel’ para sabotar os esforços de paz?

Vamos começar com uma citação de 2019 atribuída a Netaniahu em uma reunião privada do partido Likud:  

“Quem quiser impedir a criação de um Estado palestino deve apoiar o fortalecimento do Hamas e a transferência de dinheiro para o Hamas… Isso faz parte de nossa estratégia: isolar os palestinos em Gaza dos palestinos na Cisjordânia.”

Embora Netaniahu tenha negado ter dito isso, vamos assumir que ele disse. Ele se referia à implementação de uma decisão tomada em agosto de 2018, quando o gabinete de segurança de “Israel” aprovou a transferência de dinheiro do Catar para o Hamas, entregue literalmente em malas.  

Por quê? Para entender isso melhor, precisamos voltar um pouco no tempo.  

Em 2017, a Arábia Saudita e uma coalizão de Estados árabes pró-EUA impuseram um cerco ao Catar, acusando-o de apoiar “extremismo” e exigindo que Doha encerrasse seu financiamento ao Hamas. Essa medida dificultou as finanças do Hamas, mas acabou saindo pela culatra: aproximou ainda mais o Hamas do Irã, seu outro aliado-chave.  

No mesmo ano, o Hamas publicou uma nova carta que aceitava a solução de dois Estados e rejeitava o antissemitismo. Eles até assinaram um acordo com a Autoridade Palestina (AP) para assumir o controle civil de Gaza. No entanto, a pressão de “Israel” e dos EUA sobre a AP matou o acordo antes que ele entrasse em vigor.  

Em um golpe devastador para a economia já fragilizada de Gaza, a Autoridade Palestina parou de pagar salários aos seus funcionários em Gaza no final de 2017.  

Em 30 de março de 2018, o Hamas apoiou os protestos da Grande Marcha do Retorno, nos quais milhares de moradores de Gaza se manifestaram pacificamente ao longo da cerca de separação. A resposta de “Israel”? Suas forças dispararam e mataram centenas de manifestantes desarmados e feriram dezenas de milhares.  

Com a mudança de tática do Hamas, o fortalecimento de laços com o Irã e a falta de resposta de “Israel” às ações não violentas, “Israel” aprovou a ajuda do Catar para aliviar as tensões, não com o intuito de formar uma “aliança”, mas para evitar um conflito armado. Netaniahu defendeu a medida, argumentando que ela tinha como objetivo “restaurar a calma às aldeias do sul”.

Essa ajuda continuou mesmo após a saída de Netaniahu do cargo, sob os primeiros-ministros Naftali Bennett e Yair Lapid em 2021 e 2022. Benny Gantz, agora um proeminente oponente de Netaniahu, era o ministro da Defesa enquanto a ajuda do Catar chegava a Gaza.  

Outro ponto do argumento sobre uma aliança Hamas-Netaniahu é que ele deliberadamente colocou a Cisjordânia contra Gaza. Mas essa divisão começou em 2006, quando o Hamas venceu as eleições legislativas palestinas, durante o governo do primeiro-ministro de “Israel” Ariel Sharon, que também decidiu retirar-se de Gaza e colocá-la sob cerco em 2005.  

A ideia de que Netaniahu teria “fortalecido” o Hamas ignora políticas anteriores de “Israel” destinadas a aprofundar divisões entre organizações palestinas. Em 2007, uma guerra civil palestina eclodiu entre Hamas e Fatá. Na época, o primeiro-ministro de “Israel”, Ehud Olmert, e o governo do Partido Trabalhista apoiaram um golpe financiado e armado pelo governo Bush para que o Fatá derrubasse o Hamas em Gaza. Quando o Hamas descobriu essa conspiração e derrotou a tentativa de golpe, assumiu o controle total de Gaza, expulsando a Autoridade Palestina liderada pelo Fatá.  

Após isso, “Israel” fez esforços repetidos para impedir qualquer reunificação entre a AP na Cisjordânia e o Hamas em Gaza. “Israel” apertou o bloqueio a Gaza e, em 2008-2009, o governo de Olmert lançou o primeiro grande ataque militar ao território, reforçando uma política de divisão entre Gaza e Cisjordânia. Enquanto isso, o Catar continuava apoiando o Hamas.  

Nessa época, um documento diplomático dos EUA vazado em março de 2008 revelou uma estratégia de “Israel” para manter Gaza “à beira do colapso”. O objetivo, segundo o documento, era deixar os civis de Gaza com fome a ponto de eles se voltarem contra o Hamas, e isso ocorreu novamente quando Netaniahu não estava no cenário.  

Então, o que tudo isso significa? É inegável que Netaniahu trabalhou para impedir a criação de um Estado palestino, minando diretamente os esforços de unidade palestina em 2014 e 2017. Mas é um grande exagero dizer que ele “fortaleceu” o Hamas.  

A ideia de uma dependência Netaniahu-Hamas repousa em duas premissas: primeiro, que Netaniahu é o único responsável pela opressão palestina, ignorando o papel mais amplo de “Israel”. Segundo, que o Hamas opera com base em uma visão orientalista ocidental do grupo, como uma coleção de estereótipos muçulmanos, com motivações explicadas por um “antigo desejo de matar judeus”, como afirma o presidente dos EUA, Joe Biden.  

Essas premissas permitem um argumento pró-“Israel” que faz de Netaniahu um bode expiatório por todos os crimes de “Israel”, enquanto rouba do Hamas todo o contexto histórico, buscando, em vez disso, argumentar que seus membros são movidos por uma disposição genética que os leva ao terrorismo contra os judeus, assumindo também sua inferioridade intelectual pela facilidade com que podem ser manipulados em uma aliança com seu inimigo.  

O fundador do Hamas, xeique Ahmad Iassin, assassinado em um ataque aéreo de “Israel” em 1988, disse uma vez:  

“A melhor solução é deixar que todos—cristãos, judeus e muçulmanos—vivam na Palestina, em um Estado islâmico.”

Essa declaração contradiz muitas das ideias apresentadas na carta original do movimento, frequentemente citada como se representasse o grupo hoje.  

Apesar de muitos discordarem do Hamas e de suas táticas, ele é visto hoje pela grande maioria dos palestinos como um movimento de resistência contra a ocupação. Entre a miríade de movimentos armados palestinos, desde os seculares e marxistas até os islâmicos, que empregam táticas semelhantes contra “Israel”, foi o Hamas que emergiu como o mais poderoso.

Embora “Israel” tenha de fato usado a desunião palestina para servir a seus interesses, suas medidas focaram-se em enfraquecer a resistência armada, em vez de apoiar qualquer grupo diretamente. As alegações de que “Israel” “criou” o Hamas ou que Netaniahu “fortaleceu” o grupo não se alinham aos fatos.

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Last Update: 23/01/2025