Israel e o sequestro da denúncia de genocídio em Gaza. Por Edward Magro

Imagens das câmeras de segurança no momento do sequestro. Foto Reprodução

Por trás de cada gesto de ajuda humanitária impedido, opera-se a engrenagem de um poder que já não se constrange em ser lido pelo que de fato é: um projeto de extermínio travestido de democracia.

O que se passou com o Madleen não é um desvio episódico num cenário de conflito. É a epifania brutal de uma política sistemática de aniquilação. Um navio civil, carregado com alimentos, medicamentos e água, a ajuda humanitária mínima para a sobrevivência de um povo sitiado num gueto, foi sequestrado em pleno mar aberto por um exército que atua com a arrogância dos que se sabem impunes, acima da lei, da ética e da compaixão. O ato, consumado em águas internacionais, não foi um acidente nem uma precaução estratégica: foi pirataria de Estado, executada com o usual cinismo diplomático israelense. Foi, sobretudo, o sequestro da denúncia, a tentativa deliberada de silenciar um grupo de jovens militantes pela “humanidade”.

Chamar de interceptação o que ocorreu com o Madleen é adotar, conscientemente a gramática do algoz. Israel sequestrou o navio, seus tripulantes e sua carga e, com isso, sequestrou também a última ilusão de que ainda restaria algum verniz de legitimidade em sua presença na arena internacional. Não se trata de impedir armas; trata-se de impedir a vida. O cerco a Gaza não é uma estratégia militar. É um instrumento de engenharia demográfica, de limpeza étnica. E, nesse projeto, a fome é método, a sede é sentença, a ausência de medicamentos é tática, e a morte é planejamento. Tudo é cálculo. Tudo é intencional.

Dizer isso não é retórica. É descrição factual.

O ministro Israel Katz, em sua verborreia automatizada e em tom jocoso, afirmou que o bloqueio visava impedir a entrada de armamentos. Mas o que havia a bordo eram barris d’água, pacotes de arroz, seringas e ativistas civis: Greta Thunberg, Rima Hassan, Thiago Ávila. O que ele teme, no fundo, não são armas, mas testemunhos. Não foguetes, mas câmeras. Não explosivos, mas consciência.

Ao mentir compulsivamente, Katz não busca convencer, busca apenas escarnecer, que é a manifestação do puro instinto de um carniceiro. Conhecido como Himmler de Netanyahu, Katz herdou do nazista (aqui me refiro a Himmler, o nazista alemão, e não ao nazista israelense Netanyahu) o frio tecnocratismo da destruição. Administra o colapso humanitário com a eficiência perversa dos genocidas e faz da mentira, não um instrumento, mas uma doutrina. A frase “Without lies, Israel dies” não é um slogan; é a verdade condensada em quatro palavras.

O chanceler israelense Israel Katz e o embaixador do Brasil em Tel Aviv, Frederico Meyer. Foto: Ahmad Gharabli/AFP

Mas Israel Katz é apenas o rosto risível de uma engrenagem séria. É o executor menor de uma política maior, cujo verdadeiro arquiteto atende pelo nome de Benjamin Netanyahu. Um primeiro-ministro atolado em denúncias de corrupção, que utiliza a guerra como biombo para sua ruína política e como motor de coesão interna. Netanyahu acusa os ativistas de “encenar provocações midiáticas”, como se a imagem de um comboio de arroz fosse uma arma de propaganda — e não um grito de desespero. A encenação, neste teatro de horrores, é a dele. Cada coletiva de imprensa, cada fotografia cuidadosamente coreografada de soldados “distribuindo ajuda” é um espetáculo obsceno destinado a domesticar o olhar do Ocidente.

Enquanto isso, caminhões com alimentos são bombardeados, centros de distribuição são atacados, hospitais funcionam à luz de lanternas e crianças morrem de infecção por ferimentos simples. Gaza tornou-se uma gaiola, e o mundo inteiro segura a chave.
A resposta internacional é um monumento à pusilanimidade. A França exige, educadamente, o retorno de seus cidadãos. A Turquia protesta com a veemência de quem já sabe que será ignorado. O Irã vocifera. E o Brasil, que deveria estar à altura de sua história diplomática e de seu compromisso com os direitos humanos, mal balbucia. A presença de Thiago Ávila a bordo do Madleen deveria ser um clamor pela ação do Estado brasileiro. Um cidadão nacional foi raptado em alto-mar por uma potência estrangeira. E o que se ouve de Brasília é o sussurro hesitante de uma diplomacia acovardada, temerosa de desagradar parceiros comerciais.

Já não se pode manter relações diplomáticas com um Estado que opera segundo a lógica do extermínio. O Brasil deve romper. Deve sancionar. Deve levar Netanyahu, Katz e seus generais nazissionistas ao Tribunal Penal Internacional. Não há mais margem para ambiguidade moral. Ou se compartilha a culpa, ou se escolhe o lado da história que ainda carrega alguma dignidade.
Porque o que se vive hoje na Palestina não é uma guerra. É a normalização de um crime. Não se trata de excessos, de desvios, de danos colaterais. Trata-se de uma ideologia organizada para a supressão de um povo. O sionismo, em sua vertente hegemônica e militarizada, tornou-se a negação sistemática da alteridade. E esse “outro” — o povo palestino — tem rosto, nome, infância, avós, e cada vez menos tempo.

A ativista Greta Thunberg a bordo do navio Madleen antes de zarpar para Gaza com ativistas da Freedom Flotilla Coalition, em 1º de junho de 2025.

O Madleen transportava mais que mantimentos. Transportava testemunhas. E foi por isso que foi detido.

A cada ativista silenciado, a cada barco impedido, o mundo se afunda mais na lama de sua própria covardia. A ONU organiza encontros.

A União Europeia redige notas. A OTAN silencia. Enquanto isso, corpos de civis são lançados à terra sem nome, sem luto, sem registro.

A indiferença tornou-se um protocolo. A barbárie, uma rotina diplomática.

A história já conheceu bloqueios. Já testemunhou guetos. Já viu populações inteiras tratadas como resíduos humanos. Mas nunca os viu tão exibidos, tão justificados, tão defendidos com tamanha audácia. E talvez esse seja o sinal mais alarmante: não estamos apenas repetindo os erros do passado. Estamos reciclando-os com novas tecnologias, novas narrativas e um novo verniz de impunidade.

Gaza não é uma tragédia. Gaza é um crime. E cada dia de silêncio é mais um parágrafo de cumplicidade.

É preciso denunciar, ainda que com a fragilidade e a aparente irrelevância da voz de um cidadão comum, porque o que está em jogo não é apenas o destino da Palestina, mas o próprio futuro da ideia de humanidade. E, quando a humanidade é sequestrada, o silêncio não é cautela. É capitulação.

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