Em 2002, o governo do Reino Unido, então liderado pelo primeiro-ministro Tony Blair, acusou Israel de deixar suas tropas “perderem o controle” em ações militares na Palestina. “A conduta dos soldados foi mais digna do exército russo do que de um país supostamente civilizado”, afirmou o embaixador britânico Sherard Cowper-Coles para um integrante do governo israelense.
A operação “Defensive Shield” havia acabado de ocorrer. Tropas de Israel cercaram a casa do líder palestino Yasser Arafat e atiraram contra civis em campos de refugiados. Um oficial veterano do exército britânico chegou a qualificar os soldados israelenses como “mal disciplinados, arrogantes e abusivos”. Mesmo George W. Bush, presidente dos EUA, não conseguiu conter Israel, também condenando a operação, embora por motivos menos nobres: em telefonema a Blair, demonstrou preocupação com a possibilidade dos assédios israelenses acabarem transformando Arafat em mártir.
Algumas coisas chamam a atenção. A primeira, o típico racismo do norte global – neste caso contra os russos, bárbaros e selvagens. “Grande império mongol” foi como alguns chamaram a Rússia soviética, liberta do czarismo absolutista, para racionalizar sua exclusão da tradição branca europeia e qualificá-la como parte dos povos cujo destino é o porrete colonialista. Hitler chamava os russos de “índios da Europa”, e tinha como um dos seus principais propósitos a colonização dos povos eslavos nos moldes da Índia britânica.
A segunda mostra como a ideologia opera no sentido do próprio Ocidente, mesmo com um passado e um presente colonialista, ser incapaz de fazer autocrítica e reconhecer que não há justificativa civilizatória no bombardeio de escolas e hospitais. A mesma Inglaterra, que chegou a ter um quinto do mundo sob seu domínio colonial direto, rapinando recursos naturais, matando, explorando e escravizando pessoas, prefere olhar para os russos do que para o espelho.
Quando Israel mata civis em Gaza, ontem e hoje, comporta-se não como bárbaros orientais, mas como os países do centro do capitalismo que, representando a fina flor da civilização do Ocidente, fazem homenagens ao seu passado colonial e, desde 1948, chancelam o cerco e a limpeza étnica contra o povo palestino. Nesse sentido, é inegável a coerência de Israel com a tradição ocidental, agindo como se espera de um preposto do norte global no Oriente Médio.
“Israel tem o direito de se defender. Mas como isso é feito importa. Deixei claras minhas grandes preocupações com a gravidade da situação humanitária lá”, afirmou Kamala Harris recentemente. Trump, seu possível adversário nas eleições presidenciais dos EUA, não pensa muito diferente.
A prova dos nove de suas intenções pode estar nas Olimpíadas: o Comitê Olímpico Palestino pediu ao Comitê Olímpico Internacional a “imediata exclusão de Israel das Olimpíadas de Paris 2024”, aplicando a mesma regra que foi utilizada para suspender a Rússia dos últimos jogos em razão da “violação da trégua olímpica”, norma que prevê a suspensão de conflitos armados durante os sete dias anteriores ao início dos Jogos Olímpicos e sete dias após o final dos Jogos Paralímpicos.
Já são quarenta mil mortos em Gaza. Apesar disso, não é surpresa que Israel, ao arrepio do direito internacional, participe das Olímpiadas sem maiores constrangimentos, mostrando, mais uma vez, que é a prática o verdadeiro critério da verdade.