Mísseis do Irã atingem Tel Aviv, em Israel . Foto: Reprodução

Não há, sinceramente, o que comemorar em ver iranianos lançando mísseis sobre Israel. O espetáculo pirotécnico das sirenes em Tel Aviv não deveria alegrar ninguém. Eu não torço por isso, ainda que esteja em ação o direito de Teerã à legítima defesa, depois de anos sendo alvo de operações terroristas em seu território, conduzidas com extrema crueldade por Israel, que contabiliza milhares de civis mortos nos últimos 20 anos.

O que me provocaria, de fato, uma imensa alegria seria o improvável: Israel acordando e decidindo parar de bombardear vizinhos, parar de assassinar palestinos com a eficiência de quem varre uma calçada. Ficar feliz, de verdade, eu ficaria se o Estado sionista deixasse o povo palestino em paz e lhe devolvesse as terras que lhe foram roubadas a ferro, fogo e esbulho jurídico..

(Pausa para os desejos inconfessáveis: não me seria indiferente a explosão de uma bomba iraniana bem no centro de uma reunião ministerial do gabinete nazissionista de Netanyahu — com todos os ministros presentes, por óbvio)

Mas, deixando os sonhos a sonharem, o que me chama a atenção de verdade não são os mísseis de Teerã, mas os bunkers de Tel Aviv. Uma notícia chapa-branca do Globo revelou a essência de um projeto de sociedade: Israel tem leis que obrigam a construção de bunkers. Segundo o Ministério da Defesa, há cerca de 1,5 milhão dessas estruturas. Para um país com 9,7 milhões de habitantes, isso significa um bunker para cada 6,4 pessoas. Uma criança nasce, um porão a espera.

Homem busca abrigo em bunker na cidade de Ashkelon, em Israel — Foto: Ronen Zvulun/Reuters

Há países que constroem escolas, bibliotecas, parques. Israel, fiel à sua vocação mais íntima, especializou-se em outro ramo da engenharia: o da fortificação compulsiva. Não é provocação panfletária. É estatística: 1,5 milhão de bunkers, um para cada 6,4 viventes. Cada nascimento, um metro cúbico de concreto. Cada casamento, mais enlatados estocados.

Enquanto o mundo ainda sonha com cidades abertas e a desmilitarização da vida pública, Israel ergue uma estética de trincheiras enterradas. Do ponto de vista afetivo, é um país onde não há praças, há perímetros de segurança. Não há cidadania, há planos de evacuação. Não há projeto de vida pública, há manuais de sobrevivência.

O bunker é mais que abrigo físico. É catequese diária. Um altar de concreto onde se cultua o medo e a glorificação da violência como traço social a ser perenizado. Cada parede reforçada é um sermão silencioso: “A guerra é o teu destino, menino. Entre o recreio e a lição de matemática, haverá uma sirene. Entre o primeiro beijo e o alistamento militar, haverá Gaza.”

Se arquitetura é expressão de projeto social, então Israel é um mausoléu em tempo real. Um país que fez da escavação sua metáfora de existência. Marmotas entocadas. Enquanto outras nações cortam fitas em escolas e teatros, Israel corta fitas em porões climatizados. O cimento, que sustenta sonhos em outros lugares, ali veda fantasmas e abafa o som das próprias explosões.

A indústria mais sólida de Israel não é a tecnologia, nem a agricultura de precisão, muito menos as startups que encantam os tolos de Davos. A verdadeira engrenagem nacional é a produção em massa do medo. Medo como ativo estratégico, bem de consumo e cimento: a cola que une a identidade do porão.

E é um medo seletivo. Dentro dos bunkers, israelenses se protegem das consequências das próprias ações. Do lado de fora, palestinos não têm sequer a ilusão do abrigo. Apenas céu aberto, poeira e contagem regressiva para o próximo ataque. Para uns, cápsulas de sobrevivência. Para outros, covas coletivas.

Israel nunca foi um país que se defende. É um país que converteu o ataque em ideologia de Estado e a ideologia em fetiche arquitetônico. Enquanto uns cultivam jardins, Israel cultiva bunkers. Enquanto, em outros lugares, o refúgio é sinônimo de aconchego, ali é concreto, com filtros de ar e estoque de enlatados, sempre pronto para o próximo ciclo bélico.

A cada incursão militar, a cada demolição em território palestino, o Estado de Israel repete seu mantra: “Vejam, temos razão em cavar mais fundo.” O bunker não é símbolo de resiliência. É monumento ao fracasso moral. Não é abrigo. É confissão de culpa, é a construção metódica do próprio túmulo em câmera lenta.

Um dia, quando arqueólogos do futuro escavarem o que restar dessa geografia moralmente devastada, não encontrarão bibliotecas ou teatros. Encontrarão cápsulas de concreto, casulos de medo fossilizado, memoriais involuntários de uma sociedade que preferiu a arquitetura da barbárie à construção da paz.

Há civilizações que sonham com a eternidade pela arte. Outras, pela ciência. Israel, ao que parece, sonha com a eternidade da guerra. E, para isso, cava, dia após dia, o seu mausoléu coletivo — um bunker para cada seis habitantes. Porque, no fim, toda a história de Israel é isso: um projeto nacional de enterrar-se vivo.

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Last Update: 14/06/2025