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Israel e a crise da exceção: hegemonia nuclear e hierarquia racial

por Renato Xavier*

Mesmo após o cessar-fogo anunciado por Donald Trump e as declarações de vitória de Irã e Israel, permanece uma pergunta: o que está realmente em jogo no Oriente Médio?

Israel é a única potência nuclear da região. Ainda assim, o discurso dominante insiste que o maior risco vem do Irã, caso o país obtenha armamento atômico. Essa equação, aceita sem contestação por anos, pode estar errada desde o início.

Para compreender esse jogo de forças, é fundamental analisar um contexto no qual as ações de Israel e do governo Netanyahu não se explicam por um único fator, mas resultam de uma articulação de forças militares, geopolíticas e raciais, operando de maneira interdependente nas esferas doméstica, regional e internacional. Trata-se de uma dinâmica complexa, em que essas dimensões se reforçam mutuamente para sustentar um regime de dominação e excepcionalismo.

Essa articulação tem, em sua essência, um componente discursivo central. A política israelense de ocupação e apartheid se sustenta na construção do palestino como um “outro” ontológico, um corpo racializado a ser controlado, cercado e vigiado. Já o Irã ocupa, nesse mesmo regime discursivo, a posição de inimigo estratégico: um Estado convertido em ameaça sistêmica. Sua eventual capacidade de dissuasão impõe limites inéditos ao uso irrestrito da força e, com isso, desafia a condição de exceção permanente que Israel reivindica para si. Ambos os casos se organizam por meio de uma lógica de alterfobia, que fabrica sujeitos a partir da negação: o indesejado, o temido, o desautorizado a existir politicamente.

O temor de Israel diante de um Irã nuclear, portanto, não pode ser lido sob uma única chave. Ele ativa um padrão mais profundo de administração da diferença, no qual o “outro” só pode ser reconhecido como ameaça, jamais como sujeito legítimo de poder, circulação ou soberania.

A assimetria armada tem garantido a Israel uma posição privilegiada: a de ator hegemônico, capaz de intervir militarmente em Gaza, no Líbano, na Síria ou contra alvos iranianos, sem temor de retaliações equivalentes. Essa posição de excepcionalidade é sustentada, entre outros fatores, pela chamada “Doutrina Begin”, formulada em 1981 após o bombardeio do reator nuclear iraquiano de Osirak, que estabelece o suposto direito de Israel a destruir preventivamente qualquer capacidade nuclear emergente na região. Trata-se, na prática, de uma espécie de Doutrina Monroe aplicada ao Oriente Médio: nossa região, nossas regras. Israel atua como peça central da projeção de poder americana, operando para impedir o surgimento de potências regionais autônomas e garantir o controle de Washington sobre uma das regiões mais estratégicas e ricas do planeta.

O momento atual da ordem global torna essa dinâmica, de caráter imperialista e colonial, ainda mais crítica. A ascensão da China como rival sistêmico e a invasão da Ucrânia pela Rússia, à revelia dos Estados Unidos e da Europa, sinalizam um período de reconfiguração profunda nas formas de projeção e disputa de poder. Nesse cenário, o Irã representa não apenas uma ameaça regional a Israel, mas também um desafio sistêmico ao controle exercido pelos Estados Unidos.

Quando a justificativa para atacar o Irã se apoia em argumentos morais ou culturais, a hipocrisia dos critérios ocidentais torna-se evidente, sobretudo na comparação com outros aliados do Ocidente, como a Arábia Saudita (um regime absolutista que financia grupos extremistas, mas que ainda assim é tratado como um “parceiro confiável” em razão de sua utilidade estratégica). O Irã, por sua vez, não é condenado por seu autoritarismo, mas por resistir ao monopólio da violência exercido por Israel. Sua aproximação crescente com China e Rússia não é apenas econômica: trata-se de uma aliança geopolítica que ameaça décadas de dominação ocidental no Oriente Médio. Nesse contexto, a possibilidade de um Irã com capacidade nuclear, ainda que meramente dissuasiva, representa um abalo profundo nas relações de poder.

Num cenário hipotético de um Irã nuclear, Israel se veria, pela primeira vez, diante de limites concretos à sua liberdade de ação militar. Seria forçado a negociar em condições mais paritárias, a ponderar as consequências antes de agir e a reconhecer que já não mais detém a excepcionalidade armada. O que está em jogo, portanto, não é a segurança, mas o privilégio, diretamente vinculado à manutenção da hegemonia americana por meio de seu principal aliado regional.

Essa disputa por hegemonia não se dá apenas no plano militar: ela também se trava no plano simbólico. Não é raro que qualquer crítica ao Estado israelense seja imediatamente rotulada como antissemitismo. Essa reação faz parte de uma luta por significados em aberto, que se intensifica nos momentos de conflito armado. Afinal, a guerra não se limita ao campo de batalha: ela é também uma articulação de discursos. Importa, portanto, afirmar: a crítica aqui se dirige ao projeto político liderado por Benjamin Netanyahu e sua coalizão de ultradireita, não ao povo judeu nem ao direito de existência do Estado de Israel. Trata-se de um governo que vem aprofundando práticas autoritárias e supremacistas, intensificando o apartheid imposto aos palestinos e criminalizando a dissidência interna. Denunciar esse regime não é intolerância religiosa ou étnica: é responsabilidade política diante de um sistema de opressão racial, colonial e militar.

A real ameaça, para o governo Netanyahu, não é ser destruído pelo Irã. Mesmo quando projeta, retoricamente, a destruição do regime iraniano, esse tipo de formulação permanece no campo da falácia estratégica. O que está realmente em jogo é ser forçado a aceitar limites. É perder o privilégio de exercer violência sem resposta proporcional. É ter que negociar em condições menos assimétricas com rivais regionais. O discurso da “ameaça existencial” conecta propositalmente diferentes medos (autoritarismo iraniano, memória do Holocausto, antissemitismo, terrorismo) para justificar uma posição específica: Israel como exceção permanente no Oriente Médio. Trata-se de uma sobreposição intricada entre ameaça militar e simbólica. A simples hipótese de um Irã com capacidade nuclear rompe essa narrativa, forçando Israel a se submeter às mesmas regras que impõe aos demais.

Essa assimetria se manifesta de forma ainda mais evidente na relação com a Palestina. Segundo dados de organizações como Human Rights Watch e B’Tselem, Israel exerce controle absoluto sobre territórios, recursos, deslocamento populacional e acesso a direitos civis, características que atendem à definição jurídica internacional de apartheid. A relação entre Israel e os palestinos não é de conflito, mas de dominação. E essa dominação só se sustenta enquanto houver supremacia absoluta da força, apoio irrestrito dos Estados Unidos e um sistema internacional amplamente disfuncional, incapaz de impor limites efetivos a essa prática. Um cenário assim é ideal para governos autoritários como o de Netanyahu. É um sistema desenhado para garantir supremacia etno-racial e territorial.

Muitos especialistas argumentam que o Irã é um regime autoritário, teocrático, que persegue minorias e ameaça abertamente o Estado judeu. Parte disso é verdade, sobretudo no que diz respeito ao caráter autoritário e às perseguições internas. Mas isso não legitima automaticamente o direito de Israel agir como potência colonial na região. A crítica aqui não relativiza os problemas internos do Irã, mas recusa seu uso como cortina de fumaça para justificar atrocidades e violações de direitos humanos cometidas por Israel. Outro argumento recorrente sustenta que Israel é a única democracia funcional do Oriente Médio e que, por isso, precisa recorrer à força para se proteger. Embora Israel mantenha instituições democráticas funcionais para sua população, uma democracia que subjuga milhões de pessoas, nega direitos com base em etnia e impõe bloqueios territoriais sistemáticos não pode ser considerada plena. “Democracia para nós, imperialismo para eles” não é novidade. A postura do governo Netanyahu, caracterizada por suas alianças com setores extremistas que defendem a anexação total da Cisjordânia e a expulsão formal dos palestinos de qualquer projeto futuro de soberania, indica uma estratégia política que se beneficia ou é indiferente às críticas sobre a natureza de sua democracia.

Um Oriente Médio menos atravessado por hierarquias e assimetrias estruturais exigiria a desnaturalização da excepcionalidade israelense e a construção de mecanismos de reconhecimento mútuo, negociação política efetiva e limitação da violência unilateral. Para Israel, isso significaria renunciar à posição de enclave armado autorizado a operar acima do direito internacional. Nesse contexto, a capacidade nuclear iraniana não representaria necessariamente uma ameaça existencial, mas sim um ponto de inflexão na ordem regional fundada na supremacia e na impunidade militar.

A questão nuclear iraniana, no entanto, ultrapassa a esfera regional e se insere na disputa mais ampla pela reconfiguração da ordem global. A posse desse tipo de capacidade tenderia a conferir ao Irã maior peso diplomático nas negociações internacionais, algo que, historicamente, enfrenta resistência por parte dos Estados Unidos. Isso não constitui uma defesa da proliferação nuclear, mas evidencia como as dinâmicas de poder moldam os critérios de legitimidade na política internacional.

É preciso lembrar que Israel nunca assinou o Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP) e, ainda assim, mantém um arsenal atômico não declarado de algo entre 80 a 400 ogivas nucleares, segundo a estimativa de especialistas, com o respaldo tácito das grandes potências ocidentais. Ao mesmo tempo em que acusa o Irã de buscar armamento nuclear, Israel jamais foi submetido aos mesmos padrões de fiscalização ou responsabilização. Essa assimetria revela a hipocrisia da ordem global, na qual a proliferação é tolerada ou condenada conforme os alinhamentos geopolíticos, e não com base em princípios universais. Essa é a gramática do privilégio: algumas regras se aplicam a todos, outras se aplicam a todos, exceto um. Nesse contexto, vale perguntar: Israel está mais próximo do modelo de contenção imposto ao Irã ou do estatuto de exceção concedido à Coreia do Norte? Ou estaria, talvez, numa posição ainda mais privilegiada, como a única potência nuclear cuja existência não pode sequer ser oficialmente reconhecida, mas que opera com total liberdade estratégica?

Israel não teme o Irã. Teme a ruptura da hierarquia que sustenta sua posição regional. Teme, ainda mais, a queda do muro que o separa do restante da região. Não o muro físico, mas o simbólico: aquele que garante sua condição de enclave armado, operando acima das normas do direito internacional e das resoluções das Nações Unidas, que devem ser cumpridas por outros, mas nunca por si. O que está em jogo, no fundo, não é a existência de Israel, mas a continuidade de um sistema articulado de dominação: o controle colonial dos territórios palestinos, a hierarquia racial que estrutura esse controle, a supremacia militar regional que garante impunidade e a projeção hegemônica americana que sustenta todo esse arranjo. Talvez, por isso mesmo, a possibilidade de dissuasão seja tão temida: porque ela exige justamente o fim da condição de guardião exclusivo das chaves: das fronteiras, dos direitos, da existência política.

Com o avanço de líderes autocráticos e um sistema internacional falido, incapaz de impor freios e contrapesos às grandes potências, a corrida armamentista já não parece uma ameaça. Parece destino.

*Renato Xavier é doutor em Ciência Política pela USP e pesquisador de pós-doutorado no CEBRAP, com bolsa da FAPESP. Suas pesquisas investigam a centralidade da raça na construção das Relações Internacionais contemporâneas e os processos de codificação racial em plataformas digitais.

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Last Update: 05/07/2025