A luta política atual na Palestina é quase que exclusivamente armada. No entanto, não sempre foi assim. Em 2006, ocorreram eleições históricas em que o Hamas se tornou o partido mais votado e com mais parlamentares para a Autoridade Palestina, que governaria Gaza e a Cisjordânia. Ismail Hanié, assassinado em 31 de julho de 2024, era o líder do bloco parlamentar do partido e se tornou primeiro-ministro. O Hamas conquistou 74 de 132 cadeiras, 78% dos 1,3 milhões de eleitores votaram. A reação de “Israel” foi muito violenta.
É preciso compreender de onde surgiram as eleições palestinas. Depois de 1993, com os Acordos de Oslo, foi criada a Autoridade Nacional Palestina (AP). Ela deveria se tornar o governo da Palestina antes do ano 2000, algo que nunca aconteceu, pois “Israel” manteve a ocupação militar de Gaza, da Cisjordânia e de Jerusalém oriental, que, pelo acordo, deveriam ser o Estado da Palestina. O Hamas sempre foi contra esse acordo sabendo que era uma armadilha. Mas, naquele momento, o Fatá de Iasser Arafat, fundado na década de 1950, era de longe o maior partido político palestino.
O ponto de virada foi o ano 2000. “Israel” foi derrotado pelo Hesbolá no sul do Líbano, mostrando sua fraqueza. Ao mesmo tempo, os Acordos de Oslo se mostraram uma farsa completa. Quando a extrema direita sionista começou a fazer provocações na Mesquita de al-Aqsa, um enorme levante palestino começou, era a Segunda Intifada. Quem liderou esse movimento foi o Hamas, quando o partido já era mais organizado, conseguindo expulsar totalmente a ocupação militar de “Israel”, em 2005. Esse movimento de luta das massas fez o Hamas se tornar o partido mais popular da Palestina.
Diante dessa nova conjuntura, o Hamas decidiu mudar sua política. Antes, ele denunciava a farsa da Autoridade Palestina, mas, agora, com forças acumuladas, acreditava que as eleições poderiam evoluir a luta política, o que foi um grande acerto. Assim, no ano de 2006, participaram com uma campanha eleitoral enorme. As mulheres militantes do Hamas foram cruciais para realizar a campanha eleitoral, fazendo a tradicional campanha política de porta em porta nos campos de refugiados da Palestina.
Os EUA intervieram nas eleições, mas não esperavam que o Hamas estaria tão forte. Um áudio vazado de Hillary Clinton, uma das principais representantes do imperialismo do país, deixa isso claro. Ela disse: “Eu não acho que deveríamos ter pressionado por uma eleição nos territórios palestinos. Acho que isso foi um grande erro. E se fôssemos pressionar por uma eleição, deveríamos ter garantido que fizéssemos algo para determinar quem iria vencer.”
A crise em “Israel” foi gigantesca. O Hamas já era o principal inimigo dos sionistas naquele momento e agora era comprovadamente o partido mais popular da Palestina, tendo a liderança do parlamento na figura de Ismail Hanié. “Israel” decidiu não reconhecer o resultado das eleições. Mas isso foi motivo de grande crise. Um dos líderes do Mossad, Efraim Halevy, afirmou que “[‘Israel’] deveria ter reconhecido o resultado democraticamente alcançado na eleição, o que não fizemos”.
Segundo ele, isso foi um “grande erro” porque fez a AP se tornar “um sistema falido”. Ou seja, o Hamas enterrou a farsa que foram os Acordos de Oslo 13 anos antes. “Israel” permitiria um governo palestino que fosse submisso ao sionismo, um governo popular que de fato luta pela libertação da Palestina não seria aceito. Mas isso não ficou claro de imediato. Houve todo o processo posterior de repressão, de cerco à Faixa de Gaza, e até mesmo de um confronto armado entre o Fatá e o Hamas estimulado pelos sionistas.
A vitória do Hamas
A comissão eleitoral anunciou, em janeiro de 2006, que, dos 132 assentos no Parlamento, o Hamas ganhou 76, e o Fatá, 43. Ahmed Qureia, o primeiro-ministro palestino, e seu gabinete renunciaram, mesmo antes dos resultados oficiais serem anunciados, e Mahmoud Abbas, o presidente palestino, deveria pedir ao Hamas para formar o próximo governo.
O principal líder do Hamas, Khaled Mashaal, disse a Abbas que o partido estava pronto para uma parceria política. Mahmoud Zahar, um dirigente do Hamas, disse que o seu braço armado estenderia sua trégua de um ano se “Israel” reciprocasse. “Se não, acho que não teremos outra opção senão proteger nosso povo e nossa terra”, disse ele.
Saeb Erekat, um parlamentar do Fatá, disse que o partido não quer se juntar a um governo do Hamas. “Seremos uma oposição leal e reconstruiremos o partido”, disse Erekat, após se encontrar com Abbas. Já Nabil Shaath, outro parlamentar do Fatá, disse que a liderança do partido tomaria uma decisão posteriormente.
Abbas havia sido eleito separadamente no ano anterior e continuou como presidente. No entanto, ele afirmou que renunciaria se não pudesse mais “defender a paz”. Isso porque o parlamento, agora com maioria do Hamas, tem o poder de aprovar as decisões do presidente.
Mushir al-Masri, um candidato do Hamas que venceu a eleição no norte da Faixa de Gaza, afirmou que as negociações de paz e o reconhecimento de Israel “não estão na nossa agenda”, mas o partido estaria disposto a ter uma aliança com o Fatá. Ismail Hanié também se pronunciou: “Não tenham medo. O Hamas é um movimento palestino, é um movimento consciente e maduro, politicamente aberto na arena palestina, e ao seu entorno árabe e islâmico, e igualmente aberto à arena internacional”.
EUA, ‘Israel’ e Fatá se unem contra o Hamas
Em março, o governo novo se forma, mas o Fatá se recusa a participar. Os EUA e a União Europeia suspendem as relações com o governo e a ajuda financeira. O Hamas reagiu e realizou um ataque contra “Israel”, resultando na morte de dois soldados e na captura do soldado Gilad Shalit. “Israel” respondeu invadindo Gaza. A crise gerada pelo Fatá levou a alguns confrontos armados com o Hamas.
Abbas convocou eleições antecipadas, provocando novos conflitos entre Fatá e Hamas, seguidos de um cessar-fogo temporário. Os primeiros-ministros israelense e palestino, então, iniciaram conversações formais, e “Israel” concordou em descongelar fundos tributários retidos. No entanto, o Fatá continuou com sua campanha contra o Hamas, estimulada pelo sionismo, que já estava no controle de Abbas a muito tempo.
A luta entre as organizações se intensificou em Gaza, com o Hamas tomando o controle da região. Em resposta, Abbas demitiu o governo e declarou estado de emergência, nomeando Salam Faiiad como primeiro-ministro de um governo de emergência. O novo governo foi rapidamente reconhecido e apoiado pelos EUA, que suspenderam o embargo de ajuda. “Israel” iniciou contatos formais com o governo Abbas. O golpe imperialista foi dado por meio do Fatá de Abbas.
Essa crise acabou apenas em 2007, e assim se formou a divisão que existia até 2023. Na Faixa de Gaza, o governo era do Hamas, na Cisjordânia, o governo do Fatá. “Israel” nunca mais deixou eleições acontecerem, sabendo que sempre seria derrotado. Ismail Hanié renunciou ao cargo de primeiro-ministro em 2014 em uma das tentativas de reconciliação com o Fatá. A partir de 2019, deixou a Faixa de Gaza já como o principal dirigente do Hamas, o líder do birô político do partido.
A cisão criada em 2006 pela intervenção do imperialismo e do sionismo chegou mais próximo de seu fim em julho de 2024, com o acordo assinado em Pequim pelo Hamas, o Fatá e mais 12 organizações palestinas. Alguns analistas políticos consideram que o assassinato de Hanié pode ter como um dos objetivos tentar manter essa divisão. O Fatá, durante toda a guerra de 2023, nunca entrou em confronto com “Israel”, a polícia da AP segue agindo como linha auxiliar do exército sionista na Cisjordânia. Mas tudo pode mudar com a conquista que foi o acordo em Pequim.