O que se vê no Irã não é; o que é, não se vê. A máxima popular iraniana resume bem o desafio de compreender uma sociedade que, embora viva sob um regime teocrático rígido, se mantém politizada, crítica e em constante movimento. Para a jornalista Adriana Carranca, autora de O Irã sob o chador, a visão predominante no Ocidente sobre o país é profundamente distorcida: a única voz iraniana ouvida no Ocidente é a do aiatolá Ali Khamenei – que embora detenha o chamado ‘poder supremo’, está longe de resumir ou representar os sentimentos, pensamentos e desejos do conjunto da população do país

Com ampla experiência em zonas de conflito no Oriente Médio, Carranca argumenta que há um erro grave ao reduzir o Irã à caricatura de um Estado homogêneo e submisso. “A sociedade iraniana é contra o regime dos aiatolás, principalmente em Teerã e nas áreas urbanas”, diz, ao analisar as tensões recentes com Israel e os EUA. “Mas essa oposição termina no momento em que uma força externa impõe uma troca de regime.”

Nesta entrevista a CartaCapital, ela compartilha impressões do país, propõe uma reflexão sobre os limites da cobertura ocidental e reforça: nenhum iraniano engolirá uma ‘libertação’ conduzida por mísseis americanos ou israelenses.

Confira os destaques a seguir.

CartaCapital: Qual o motivo dessa guerra entre Irã e Israel? Você vê algo além do motivo alegado, de evitar que o Irã desenvolva uma bomba nuclear?

Adriana Carranca: Israel considera o regime iraniano que está no poder de 1979 como o seu maior inimigo, como uma ameaça existencial, mas o programa nuclear iraniano teve início nos anos 1950, com apoio dos EUA ao governo de Reza Pahlevi (ex-xá do Irã, que governou de 1941 a 1979). Esse programa nuclear iraniano foi interrompido em 1979, com a Revolução Islâmica, para ser retomado na guerra Irã-Iraque (1980-1988). Desde então, vem se intensificando, com um salto nos anos 2000.

Do ponto de vista de Israel, o Irã é uma ameaça existencial. Do ponto de vista do Irã, Israel e os EUA são ameaças existenciais ao regime. Mas é preciso olhar também para todo o mapa da região: o Irã é um país encurralado entre o Afeganistão e o Iraque, dois países nos quais os EUA fizeram suas duas maiores intervenções militares neste século. Duas intervenções caóticas – uma delas, no Afeganistão, resultou na retomada do poder pelo próprio Talibã, e a outra, no Iraque, resultou num completo caos. Então, desde 2003, o Irã se vê cercado por uma enorme quantidade de tropas americanas e de armas nas suas duas maiores fronteiras, com o Afeganistão e o Iraque.

Em 2009, Obama, viu uma oportunidade de comunicação com o Irã, por conta de uma fragilidade circunstancial do regime, e firmou um acordo nuclear, com a participação de potências europeias, anunciado em julho de 2015. Esse acordo vinha sendo monitorado. Todos os envolvidos, incluindo as agências da ONU, afirmavam que o Irã vinha cumprindo esse acordo. No entanto, Donald Trump assumiu o poder pela primeira vez e retirou unilateralmente os EUA desse acordo nuclear, em 2018.

Os iranianos não encontraram ainda uma forma de derrubar o regime, mas tentam o tempo todo

Digo tudo isso para mostrar que a questão nuclear iraniana não é nova e, portanto, não justificaria uma intervenção emergencial de Israel. Aliás, o próprio Netanyahu, vem declarando publicamente que o Irã está próximo de obter a bomba atômica desde 1996, há 20 anos.

A verdade é que ninguém sabe quão próximo o Irã estaria de obter uma bomba atômica, e existe um outro motivo para esse ataque israelense: a troca do regime. O Irã está no seu momento mais frágil desde a Revolução Islâmica, porque tem o seu principal aliado, que é a Rússia, envolvido numa grande guerra com a Ucrânia, e perdeu o apoio de grupos armados como o Hamas e o Hezbollah, que estão debilitados.

CC: Qual a importância da energia atômica para o Irã? Como essa questão é apresentada dentro do país?

AC: Do ponto de vista dos iranianos, eles sempre defenderam o programa nuclear como um meio de obter independência energética. A população vem, entretanto, apoiando cada vez mais o programa de armas nucleares também, como uma forma de defesa. Essa é uma posição popular que se intensificou depois das campanhas militares dos EUA no Afeganistão e no Iraque, mesmo entre grande parte da população iraniana que se opõe ao regime.

CC: Como alguém que esteve no Irã algumas vezes e escreveu um livro a respeito, como você considera que a sociedade iraniana está lidando com esse conflito?

AC: Os iranianos acreditam que estão atravessando hoje apenas um momento em relação aos mais de 4.000 anos de história do Império Persa. Eles veem o regime dos aiatolás como algo passageiro. Sentem que esse é um regime que, por meios próprios, eles vão conseguiram derrubar.

A sociedade iraniana é contra o regime dos aiatolás, principalmente em Teerã e nas áreas urbanas, onde as pessoas são extremamente politizadas, intelectualizadas, educadas; entendem de geopolítica e são muito antenadas com tudo o que acontece no mundo.

Mas essa oposição termina no momento em que uma força externa impõe uma troca de regime, especialmente quando essa força externa é Israel – e mais especialmente ainda quando os iranianos, que são muçulmanos, veem tudo o que aconteceu na Palestina; e veem isso acontecer também com os países vizinhos que sofreram intervenções dos EUA, como o Afeganistão e o Iraque, que, depois da intervenção americana, se encontram numa posição muito pior, caótica.

Adriana Carranca explica a complexa relação entre o povo iraniano e seu governo (Foto: Arquivo pessoal)

Pode ser que uma parte do movimento reformista iraniano esteja vendo esse momento como uma oportunidade de mudança. Mas eles não vão aceitar que uma troca de regime seja feita por imposição de uma força estrangeira. Se os EUA ou Israel acreditam que vão bombardear o Irã e que os iranianos vão agradecer por essas bombas, porque é isso vai ajudar a muda-los o regime, pode esquecer.

É até possível que a oposição iraniana encontre uma janela de oportunidade nesse momento para trocar o regime por conta própria. Pode até ser que o regime se veja enfraquecido a ponto de fazer concessões ao movimento reformista. A gente não sabe. Mas eu diria que a população toda do Irã se opõe à troca de regime pela força externa, especialmente como algo vindo de Israel e dos EUA.

CC: Como interpretar os sentimentos e as opiniões políticas de uma população que vive sob uma ditadura teocrática? Como o jornalismo, por exemplo, pode captar as opiniões e sentimentos dos iranianos?

AC: Há uma frase dita pelos iranianos, da qual eu gosto muito, que diz: ‘no Irã o que se vê não é; e o que é não se vê’. Há uma população que cumpre as medidas impostas pelos aiatolás, mas que, no bastidor, é absolutamente constestadora e revolucionária. Os iranianos fazem protestos contra absolutamente tudo, praticamente todos os dias.

A gente tem uma ideia errada dos iranianos, de que ele sãos submissos a esse regime. Eles não são. Existem jornais reformistas no Irã – e, embora o governo tente fechá-los o todo o tempo, eles reabrem. Existe uma proibição à internet e à TV por satélite, mas todas as casas têm o disco de recepção de sinal de satélite e todas as casas conseguem acesso à internet. Eles driblam o tempo todo as regras dos aiatolás.

Os iranianos não encontraram ainda uma forma de derrubar o regime, mas tentam o tempo todo. Todas as eleições têm candidatos reformistas. A política é discutida abertamente. A política é discutida nos cafés de Teerã, nas casas, no comércio. Eles discutem política o tempo todo, e não se privam de falar, não se privam de combater o regime, mesmo que sofram as consequências disso.

Do ponto de vista de Israel, o Irã é uma ameaça existencial. Do ponto de vista do Irã, Israel e os EUA são ameaças existenciais

Mesmo sob uma teocracia, o Irã tem dois prêmios Prêmios Nobel da Paz. A jurista Shirin Ebadi apoiou a Revolução Islâmica contra xá Reza Pahlevi, cujo governo era marcado por corrupção e desigualdade social. Todo o progresso e o desenvolvimento econômico prometido por Pahlevi justificava sua aproximação com o Ocidente, mas essas promessas não foram cumpridas – ou só foram cumpridas para uma pequena elite. Enquanto o país empobrecia, uma pequena elite via o xá dar grandes festas em seu palácio, regadas a champanhe importado, enquanto o resto da população empobrecia.

O fato de Ebadi contestar isso e se tornar a primeira mulher iraniana a ganhar o Prêmio Nobel da Paz, em 2003, é uma sinalização do caráter de contestação, de oposição dos iranianos. Ela apoiou a Revolução Islâmica no início, quando o aiatolá Khomeini prometia uma democracia islâmica, que mantivesse a tradição, a cultura persa e a religião que foi adotada pela maioria da população iraniana. Quando tudo isso provou ser uma mentira, a própria Shirin se tornou uma das principais opositoras ao regime dos aiatolás. Dez anos depois, em 2023, quem ganhou o Prêmio Nobel da Paz foi a Nardes Mohamad, uma ativista iraniana por direitos humanos que foi presa pelo regime e é reconhecida, assim como Shirin Ebadi, por defender os direitos das mulheres.

Ambas são exemplos do caráter combativo e politizado de uma população iraniana que está longe de ser sujeita passiva do regime. A verdade é que os iranianos contestam e protestam o tempo todo contra o regime.

CC: Seu livro menciona no título o chador, o véu usado pelas mulheres no Irã, que, no Ocidente, é visto como o símbolo mais forte da opressão do regime. Como isso funciona dentro da cultura iraniana?

AC: Vou te responder contando uma cena que eu vivi com a própria Shirin Ebadi, Prêmio Nobel da Paz, quando fui entrevistá-la, na época em que ela morava em Teerã. Ela era advogada e atendia as mulheres gratuitamente em sua própria casa. Então, eu fui. Bati direto na porta da casa porque eu não conseguia falar com ela por telefone. Para minha surpresa, a própria Shirin atendeu, usando um véu.

Então eu perguntei: ‘Você defende os direitos das mulheres? Por que você está usando o véu mesmo dentro de casa, mesmo longe dos olhares da polícia da moral do regime iraniano?’ Ela me respondeu: ‘Porque eu não luto para não usar o véu. Eu luto pelo direito de escolha, ainda que eu escolha usar o véu’.

Isso, para mim, reflete muito bem o espírito de todo movimento feminista que eu vi, não só no Irã, mas que eu pude testemunhar em outros países, como o Afeganistão e a Indonésia, que é o maior país muçulmano do mundo. Na maioria desses países, as mulheres lutam pelo direito de escolha, ainda que elas escolham usar o chador ou a burca, ou o hijab, ou niqab, ou não usar nada.

O presidente dos EUA, Donald Trump, em discurso em 21 de junho de 2025. Foto: Carlos Barria/Pool/AFP

Na primeira vez que fui ao Irã, eu fiz escala nos Emirados Árabes, onde comprei um véu preto para me cobrir. Cheguei no Irã de preto, vestida de preto, com véu preto, todo de preto. A tradutora – uma jovem que tinha à época 20 anos, que me esperava no aeroporto – estava de calça jeans, de tênis All Star, toda maquiada, com roupa bastante colorida e usando um véu que mal cobria o cabelo. Ela olhou para mim e falou: ‘Por que você está vestida assim? O que você está fazendo vestida desse jeito? Nós iranianas somos muito modernas.’ Então nós fomos para o centro de Teerã no carro dela, ela dirigindo, ouvindo funk iraniano.

Isso mostra o quanto a cobertura jornalística do Irã é preconceituosa, é baseada nos próprios valores ocidentais, porque quando a gente vai para esses países, a gente percebe que não é nada disso. Elas têm o seu próprio movimento feminista, que elas têm seus próprios valores, que elas têm suas próprias lutas e que são lutas legítimas. Elas são defensoras dos direitos humanos a seu modo. É preciso apoiá-las, apoiar essas lutas, tendo em mente que nós vivemos num mundo absolutamente diverso, em que os valores são diferentes, as culturas são diferentes e isso é preciso também ser respeitado.

CC: Você é uma jornalista e escritora que tem trabalhos publicados dentro e fora do Brasil. Como avalia a cobertura que se faz do Irã?

AC: Existe muito preconceito. A cobertura foca muito nas questões militares e ouve muito pouco a população desses países.No caso do Irã, há um abismo entre o que o governo diz e o que a população diz. Como eu disse, a população iraniana é extremamente educada, combativa, politizada e engajada  politicamente, muito longe de ser sujeita, de se submeter, sem reação ou luta, ao regime dos aiatolás. É uma população muito consciente também da geopolítica mundial. Por isso acredito que vá ser muito difícil a população iraniana apoiar qualquer intervenção dos EUA e de Israel nesse momento ou em qualquer outro momento da história, mesmo que eles queiram também essa troca de regime.

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Last Update: 22/06/2025