Investimentos chineses rompem com a lógica financeira global

por Maria Luiza Falcão Silva

Em salas de trading de Nova York, Londres, Tóquio, Xangai, trilhões de dólares circulam diariamente em busca de rentabilidade imediata. Nesse mundo hiperfinanceirizado, a poupança externa – longe de ser um salvador dos países emergentes – tornou-se uma faca de dois gumes. O termo designa capitais estrangeiros que entram no Brasil via investimentos diretos, empréstimos bancários ou compra de títulos públicos. Mas será esse fluxo realmente indispensável ao nosso desenvolvimento? A resposta exige desmontar um dogma econômico. 

A narrativa tradicional sustenta que nações como o Brasil, com poupança interna insuficiente, precisariam de capital externo para financiar estradas, indústrias e inovação. A realidade, porém, é mais complexa. Vivemos numa era em que a poupança mundial está sequestrada pelo cassino financeiro global. Em 2023, o valor dos derivativos negociados atingiu US$ 12 “quatrilhões” – 130 vezes o PIB brasileiro. Enquanto isso, investimentos produtivos em infraestrutura global caíram 8% na última década (dados UNCTAD). 
Enquanto esses trilhões de dólares giram em circuitos especulativos entre Nova York e Xangai – presos em derivativos, títulos de dívida e operações de alta frequência –, um novo modelo de inserção internacional emerge no Sul Global. Os investimentos chineses no Brasil, por exemplo, representam mais do que capital: são uma ruptura silenciosa com o paradigma da poupança externa rentista que historicamente aprisionou economias periféricas. 

O Círculo Vicioso da Financeirização 

Por décadas, a receita para emergentes foi clara: oferecer juros estratosféricos para atrair capitais voláteis, cobrindo déficits com moeda estrangeira. O resultado? Crises cíclicas como as do México (1994), Ásia (1997) e Brasil (1999), onde a fuga repentina de recursos desmontou economias inteiras. Aqui, a poupança externa transformou-se em armadilha: alimentou a ciranda financeira, apreciou moedas artificialmente e sufocou a indústria – exatamente como teorizou o famoso economista americano pós-keynesiano, Hyman Minsky, ao alertar sobre a instabilidade inerente aos mercados financeiros. 

Nesse cenário, o Brasil tornou-se refém de seu próprio atrativo. O Brasil figura entre os quatro maiores países no mundo em ingressos de Investimentos Estrangeiros Direto (IED). Em 2023, enquanto o país pagava os juros reais mais altos do G20 (6,5% ao ano), apenas 28% dos investimentos estrangeiros dirigiam-se à produção. O resto alimentava o cassino de títulos públicos e aplicações de curto prazo. No período recente os juros reais pagos no Brasil continuam na estratosfera. Até a China contempla comprar títulos públicos brasileiros. “Se a China comprar parte da dívida brasileira, o poder da Faria Lima será menor”, observa o economista Paulo Nogueira Batista Junior durante entrevista à TV 247. “Isso faria o Brasil ficar menos dependente do circuito financeiro do Ocidente, completa”. Contudo, os investimentos chineses no Brasil se voltam majoritariamente para o setor produtivo.

A Virada Chinesa: Capital com Rosto Industrial 

É contra o pano de fundo da ciranda financeira que a estratégia chinesa ganha relevância. Diferente dos fundos de ‘hedge’ ou bancos de investimento, a China chega ao Brasil com projetos de décadas, alinhados a interesses geoeconômicos mútuos. Seus investimentos – que somaram em torno de US$ 66 bilhões na última década – ignoram a sedução dos juros altos. Preferem estradas, ferrovias, redes de energia limpa e parques tecnológicos. 

O corredor ferroviário Fico-Fiol, que ligará o cerrado brasileiro ao Porto de Chancay (Peru), é emblemático: um projeto de R$ 50 bilhões que cortará custos logísticos do agronegócio e criará polos industriais no interior do Nordeste. Enquanto isso, na Bahia, a CGN Energy constrói o maior complexo eólico-solar da América Latina, com tecnologia transferida para universidades locais.

Todos sabem que a segurança alimentar é uma prioridade para a China com 1,4 bilhões de habitantes. O Brasil é o principal fornecedor de alimentos e tem sua competitividade prejudicada por deficiências em armazenamento e escoamento. Os investimentos chineses no agronegócio brasileiro podem ser um importante fator de desenvolvimento, mas é fundamental que sejam acompanhados de perto e que sejam tomadas as medidas necessárias para garantir que eles sejam realizados de forma sustentável e transparente, evitando possíveis riscos. 

O perigo de ficarmos dependentes de um país como a China é um ponto de fundamental importância para o debate, mas não é o aspecto que quero chamar atenção nesse momento. Esse artigo não é sobre comércio bilateral com a China, riscos e oportunidades. O propósito é estabelecer a diferença entre investimentos meramente especulativos e o investimento direto estrangeiro na economia real, no setor produtivo, que gera emprego, renda, inovações tecnológicas e aumentos em produtividade.

A Revolução Pós-Keynesiana em Ação 

A prática chinesa de investir na economia real materializa um princípio defendido por economistas heterodoxos como Joan Robinson e Hyman Minsky e toda uma geração de economistas que dão suporte à corrente de pensamento não ortodoxo, não convencional: “o investimento produtivo gera sua própria poupança, não o contrário”. Quando a China financia uma fábrica de baterias de lítio em Minas Gerais via joint venture (como a Envision-Renault), ela não “drena” recursos globais – cria cadeias de valor, emprego qualificado e demanda interna. 

O mecanismo é virtuoso: 
– Crédito direcionado pelo China Development Bank financia máquinas; 
– Salários de trabalhadores geram consumo e impostos; 
– Lucros reinvestidos viram poupança doméstica. 

É o oposto do modelo rentista: em vez de sugar juros da dívida pública, o capital chinês se multiplica na economia real. 

Riscos e Equívocos na Nova Rota

Claro, nem tudo é harmonia. Críticos apontam, com razão, que 70% dos investimentos chineses se concentram em mineração e energia – setores que podem reforçar a reprimarização. Há também o temor de “dumping tecnológico”: empresas como a Great Wall Motors  (GWM) recebem subsídios estatais chineses, ameaçando indústrias locais – a montadora chinesa iniciou oficialmente sua operação no Brasil em 2021, com a intenção de se estabelecer como uma base de produção e exportação para a América Latina com capacidade para produzir 50.000 unidades por ano.

Mas, comparado ao passado de espasmos financeiros, o salto é evidente. Acordos em moedas locais (real e yuan) reduzem a dependência do dólar. Memorandos entre BNDES e bancos chineses garantem contrapartidas: para cada dólar investido em ferrovias, exige-se treinamento de engenheiros brasileiros. 

O Caminho da Soberania 

O Brasil não precisa escolher entre a servidão aos juros altos e a submissão a potências estrangeiras. O exemplo chinês mostra que é possível negociar. Até o Pix desperta interesse de Pequim como modelo de inclusão financeira – sinal de que temos ativos a oferecer além de minério, soja e alimentos. 

A lição maior, porém, é teórica e prática: como provaram Coreia do Sul e China nos anos 1980; desenvolvimento exige crédito direcionado ao setor produtivo, controle de capitais especulativos e parcerias estratégicas. A poupança externa pode ser útil, mas só quando escapa da lógica financeira para se tornar semente de indústrias. 

Entre 2015 e 2025, foram anunciados 163 projetos de investimento greenfield com capital chinês no Brasil, totalizando US$ 12,9 bilhões. Os investimentos se concentram nos setores de energia, infraestrutura e indústria automotiva, e foram responsáveis pelo potencial criação de mais de 35.700 empregos no Brasil. Pela natureza dos investimentos são em setores que levam alguns anos para maturar. Mas, não batem em disparada quando as condições de mercado mudam rapidamente movidas por diferenciais de juros de curtíssimo prazo. A pandemia de covid-19 desacelerou o ritmo de investimentos chineses no mundo inteiro. O momento é de recuperação.  

A China anunciou durante a viagem do presidente Lula ao país, em maio, novos investimentos em infraestrutura, setor automobilístico, setor de alimentos, tecnologia e energia renovável. Dos R$ 27 bilhões anunciados por empresas chinesas, US$ 1 bilhão será para produção de combustível sustentável de aviação (SAF, na sigla em inglês) a partir da cana de açúcar. Enquanto o mundo navega em oceanos de derivativos que equivalem a 10 vezes o PIB global, o Brasil tem uma escolha: continuar como porto seguro de rentistas ou desenhar seu destino como nação produtora. Os investimentos chineses – com todos seus riscos – apontam uma direção. Resta saber se teremos a ousadia de trilhá-la até o fim. 

Maria Luiza Falcão Silva é economista (UFBa), MSc pela Universidade de Wisconsin – Madison; PhD pela Universidade de Heriot-Watt, Escócia. É pesquisadora nas áreas de economia internacional, economia monetária e financeira e desenvolvimento. É membro da ABED. Integra o Grupo Brasil-China de Economia das Mudanças do Clima (GBCMC) do Neasia/UnB. É autora de Modern Exchange-Rate Regimes, Stabilisation Programmes and Co-ordination of Macroeconomic Policies: Recent experiences of selected developing Latin American economies, Ashgate, England/USA. 

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Last Update: 09/06/2025