O Supremo Tribunal Federal (STF) ampliou de forma exponencial sua interferência sobre mandatos parlamentares nos últimos anos, convertendo-se em protagonista de embates políticos com o Congresso Nacional. Desde 2005, o número de decisões com impacto direto sobre deputados e senadores saltou de 36, entre 1988 e 2004, para mais de 700. De autorizações de prisão preventiva a decisões que anulam deliberações do Legislativo, o Supremo tem operado cada vez mais como um ator político, em detrimento do papel de guardião da Constituição.
O caso mais recente é o do deputado Alexandre Ramagem (PL-RJ), investigado por tentativa de golpe de Estado. A decisão da Primeira Turma do STF de manter parte da ação penal contra o parlamentar, contrariando deliberação da Câmara dos Deputados, reacendeu a insatisfação com a Corte e acelerou articulações para limitar os poderes individuais dos ministros. O presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), protocolou ação contra a medida e impulsionou o avanço da PEC que restringe decisões monocráticas no Supremo.
A atuação do STF se dá em três frentes: criminal, com autorizações de prisão e julgamentos iniciados na própria Corte; eleitoral, revisando cassações de mandato; e institucional, decidindo sobre disputas internas do Parlamento. A mudança de postura começou com o julgamento do Mensalão, em 2005, e se consolidou na Lava Jato, marcando uma guinada do tribunal rumo à judicialização da política e ao protagonismo institucional.
O caso Ramagem evidencia esse conflito. A Câmara entendeu, com base na Constituição, que os crimes atribuídos ao deputado ocorreram após sua diplomação e decidiu, por maioria, sustar a ação penal. O STF, no entanto, ignorou a decisão e manteve o processo em relação aos crimes mais graves. O relator na Câmara, deputado Alfredo Gaspar (União-AL), acusou o Supremo de extrapolar suas funções. “O Supremo errou ao tomar essa medida, e a Câmara está certa em reagir”, declarou.
A reação parlamentar ocorre em duas frentes: a jurídica, com a ação protocolada por Motta pedindo a reversão da decisão, e a legislativa, com a retomada da tramitação da PEC que veda decisões individuais de ministros sobre atos do Executivo e do Legislativo. De autoria do senador Oriovisto Guimarães (Podemos-PR), a proposta já foi aprovada no Senado e ganhou força entre os deputados. “Há um exagero. Os ministros precisam decidir de forma colegiada”, afirmou Oriovisto.
A insatisfação se agravou com a condenação da deputada Carla Zambelli (PL-SP), sentenciada a mais de 10 anos de prisão por invasão ao sistema do CNJ. Ainda que a decisão não tenha transitado em julgado, a tentativa do ministro Alexandre de Moraes de vincular automaticamente a condenação à cassação do mandato, sem votação em plenário, foi vista como nova afronta ao Legislativo. Pela Constituição, a perda de mandato só pode ocorrer após o trânsito em julgado e exige voto da maioria absoluta da Câmara.
A percepção no Congresso é clara: o Supremo tem ultrapassado os limites constitucionais, atuando como poder tutelar sobre o Legislativo. A votação que sustou parcialmente a ação contra Ramagem foi lida como resposta política à Corte. Parlamentares temem que a escalada do STF crie jurisprudência para futuras interferências. “Hoje é com Ramagem, amanhã pode ser comigo”, resume um deputado.
A movimentação de Motta ao acionar o Supremo em defesa da decisão da Câmara reflete um movimento institucional de resistência. Para o cientista político Leandro Consentino, trata-se de uma ação típica de presidentes da Casa que atuam como “síndicos dos deputados”, reagindo a interferências externas.
A tensão se agrava com ações sob relatoria do ministro Flávio Dino que questionam a execução de emendas parlamentares, instrumento central na governabilidade. A insatisfação acumulada com casos como os de Ramagem e Zambelli expõe o incômodo generalizado com o avanço do Judiciário sobre prerrogativas do Parlamento.
Esse embate tem gerado uma reação legislativa consistente. Além da PEC que limita decisões monocráticas, há propostas em debate para instituir mandatos fixos para ministros do STF, restringir ordens judiciais contra parlamentares e permitir que o Congresso anule decisões do Supremo quando estas forem consideradas extrapolações constitucionais. Mais de 90 pedidos de impeachment contra ministros foram protocolados desde 2016, sinal de um ambiente de crescente descontentamento institucional.
A crise entre os Poderes, alimentada por decisões cada vez mais controversas do Supremo, aponta para um momento decisivo no equilíbrio da democracia brasileira. Enquanto o STF acumula protagonismo político, o Congresso ensaia uma reação para restabelecer os limites entre os Poderes e reafirmar seu papel como instância legítima da representação popular.